No ano em que assinala 40 anos de idade, Ricardo de Campos (n.1977) passa pelo meu universo curatorial três vezes. A primeira, em fevereiro, com uma mostra individual no Porto, em que se apropriou, literalmente, de um armazém repleto do excesso da acumulação humana, em contexto pós-moderno, para criar o novo, não se desvinculando da sua linguagem de tendência neoexpressionista e figurativa, de pendor social e político. Nessa mesma mostra, apresentou-se, ainda, em atitude performativa, colocando nos públicos a possibilidade de anularem a identidade do artista com recurso ao seu material de expressão, ou seja, à tinta. A proposta era conceptualmente forte, impactante, como me pareceu desde o primeiro dia, forte e impactante a pintura deste artista.

Para a construção desta primeira experiência de partilha plástica foi fundamental a apreensão da dimensão processual do trabalho de Ricardo de Campos que, em linhas gerais, poderíamos dizer, se insere numa tendência geracional de dessacralização da obra de arte e dos seus suportes tradicionais, utilizando como matéria plástica o desperdício do quotidiano e criando o caos imagético, ainda que de equilíbrio compositivo, a partir de uma ideia de vivência coletiva em que não temos oportunidade de segmentar e setorizar a nossa capacidade de ver o mundo. Tudo é imagem. Tudo nos apela a uma existência subjetiva que tem por base a posse, não só de bens, mas do outro.

Numa entrevista ao jornal argentino La Nacion, publicada a 26 de abril de 2015, Boris Groys (n.1947), numa linha de pensamento herdeira da de Zygmunt Bauman (1925-2017), transmutada para a sociologia da cultura e para a dimensão prática da exibição daquilo que são as práticas artísticas e culturais contemporâneas, alerta-nos para uma reflexão sobre fenómenos do século XXI que nos parecem totalmente novos mas que, na verdade, estão em paralelo com a segunda metade do século XIX, destacando-se em ambos os períodos uma política de abertura dos mercados, o capitalismo crescente, uma cultura da fama, o retorno da força da religião, o terrorismo e o contra terrorismo. Necessariamente, a obra de Ricardo de Campos entrecruza-se com as preocupações de Groys e é consequência de um tempo e foi a forma como o artista o interpretou, como reagiu ao seu contexto, que primeiro me interessou. No consequente à crise financeira de 2008, que se abateu sobre o cidadão comum como uma pandemia, e não conseguindo (nem querendo) contrariar o seu ímpeto criador, Ricardo de Campos olhou à volta e transformou tudo em base: toalhas e lençóis de linho, serapilheiras, tábuas de MDF, redes de pesca. A matéria cresceu em relação à dimensão do vulgar e vernacular doméstico e, plasticamente, a pintura texturou-se de histórias, de mensagens, de símbolos e de verdades. Rapidamente, Ricardo de Campos havia de ultrapassar a barreira da pintura e abraçar o objetual e o instalativo. A arte liberta-se do seu espaço moderno e tradicional e agarra a vanguarda, num laivo das primeiras práticas revolucionárias da década de 1960, marcados pela pop arte, pelo conceptual e pelo minimal. Sobre este espaço da arte que deixa de ser arte e caminha para o seu fim, em sentido filosófico, muito escreveu Arthur Danto (1924-2013), sendo obrigatória, para o entendimento dos fenómenos do contemporâneo, a leitura de “O Fim da Arte” de 1964.

A visão à qual cheguei não apenas formulou uma definição provisória de arte, ela também formulou a abordagem que eu estava a assumir na crítica de arte. Em primeira instância, uma obra de arte tem que ser sobre algo – ter um significado – e de alguma forma tem que incorporar o significado no modo como ela se apresenta à consciência do espetador. Eu tornei isto slogan dizendo que as obras de arte são significados incorporados.¹

É de significados incorporados, numa lógica de integração circular e livre, que falamos quando se trata da obra de Ricardo de Campos e, não obstante, de outros artistas com os quais partilha geração. Voltando a fevereiro e fazendo a analogia ao tempo de novembro em que nos voltamos a encontrar, sem nunca nos termos perdido de vista, posso afirmar que no espaço de quase um ano, Ricardo de Campos libertou-se do seu espaço interior, da sua zona de conforto, da sua geografia doméstica, aventurando-se num caminho em que somou ao desvirtuamento do suporte tradicional da obra de arte e à reutilização de objetos e materiais do quotidiano, a afirmação dos seus grandes formatos e a adoção de um figurativo de contorno, de vanguarda e de mensagem mais corrosiva. Na exposição de fevereiro, o meu convite ao artista tinha sido motivado pelo vislumbre de um conjunto de telas suas de grandes dimensões, com as quais me cruzei num espaço de trabalho habitual (Fórum Cultural de Cerveira), e que me trouxeram a asfixia de um campo de refugiados, pelo amontoado dos corpos sugeridos na composição, pela intensidade dramática dada pela paleta de cores e pelas palavras que povoavam aquela imensidão de área pintada que, no imediato, também me levaram aos melhores exemplos da pintura gestual de Artur Bual (1926-1999).

Pintor da raia, natural e residente em Monção, Ricardo de Campos tem no seu percurso outras marcas de Bual, como o gosto pela representação iconográfica de Jesus Cristo. No imediato, a sua pintura apela à reflexão sobre este mundo de muros e de (novas) intolerâncias que achávamos a caminho da dissipação no seguimento dos horrores das Guerras Mundiais que, num passado não muito distante, nos fizeram envergonharmo-nos de sermos humanos.

Numa linguagem da apropriação das dimensões materiais e imateriais do contemporâneo, a iconografia religiosa, à maneira clássica, não apresenta consensos ou, tão pouco, adeptos. Para esta nova exposição, em que ampliamos o dispositivo à escala do crescimento e da evolução plástica de Ricardo de Campos, esse é um dos pontos de artista: o da destruição literal do ícone, do símbolo imagético de Cristo, numa metáfora clara à destruição do seu exemplo, numa análise de fé ou, simplesmente, histórica e geopolítica.

Mostly, art is about destruction and nostalgia. Generally, when you go to an exhibition, you can choose between hating the times that it represents and loving the images as they are here and now, or hating your time and feeling nostalgia for the time depicted. I think that documentary exhibitions are, in this sense, even more likely to induce you to hate your own time than a traditional exhibition is.²

 

Neste sentido, em “Apropriação, Acumulação e Anulação”, Ricardo de Campos largou a estética de representação de tendência neoexpressionista e, no diferencial de conceito, aproxima-se de um modelo que, em algumas notas, nos lembra o próprio Julião Sarmento (n.1948) e a influência das reflexões cinéfilas de Jean-Luc Godard (n.1930) sobre a condição da mulher na sociedade em construção. Voltando a Danto:

Há uma espécie de romance feminista, por exemplo, em que uma mulher chega a um entendimento interno ou consciência do significado da sua identidade enquanto pessoa e enquanto mulher. O fim da estória é este advento da autoconsciência. O que acontece depois deste ponto, o que ela faz à luz deste conhecimento, é da responsabilidade dela.³

 

A mudança acontece depois da conclusão do Mestrado em Arte Contemporánea, Creación e Investigación que frequentou na Facultade de Belas Artes de Pontevedra (Universidade de Vigo), evidência do artista que junta às suas virtudes a coragem de se colocar no confronto com a Academia e com o olhar do outro. Ricardo de Campos é pintor. É na sua arte que se define e se desenvolve, também como ser social. Aos 40 anos, esta grande exposição individual, no final de mais uma fase do seu percurso académico, é apenas prova de que não parará de nos surpreender.

Não sei se podemos considerar esta como uma exposição retrospetiva, uma vez que que Ricardo de Campos está no arranque de um percurso e na definição de um caminho. Contudo, a mostra de obras, em que diversifica escala, formato e suporte e às quais junta uma quase vintena de trabalhos desenvolvidos em parceria com outros artistas, ultrapassa a centena e ocupa o espaço emblemático da Vila das Artes. Tem indícios de Revolução em marcha? Dir-se-ia que não é Arte se, pelo menos, não respirar e transpirar a Liberdade. Assim é.

 

Helena Mendes Pereira

curadora da shairart

   

¹ DANTO, Arthur C.  – “Crítica de arte após o fim da arte” in Revista de Estética e Semiótica, Brasília, V. 3, N. 1, Janeiro/Junho 2013. Páginas 89 e 90.

² GROYS, Boris – “Exhibitions, Installations and Nostalgia” in SMITH, Terry – Talking Contemporary Curating. New York: Independent Curators International, 2015. Página 81.

³ DANTO, Arthur C.  – “Crítica de arte após o fim da arte” in Revista de Estética e Semiótica, Brasília, V. 3, N. 1, Janeiro/Junho 2013. Página 92.

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