ENTREVISTA A JOÃO LOURO
Helena Mendes Pereira: Consideras que a imagem e a construção social exposta da mulher é diferente hoje do que era nas décadas de 1950/60/70? De que forma é que essa tua visão tem expressão no teu trabalho?
João Louro: Não tenho qualquer dúvida sobre isso. Tem havido passos, pequenos passos, desde Carolina Beatriz Ângelo que, no último quartel do sec. XIX, foi a primeira mulher portuguesa a votar (e deixa-me suspirar, porque é algo tão recente e há tanto tempo para trás); ou na Inglaterra, em 1881. Contudo, esses pequenos passos, esses direitos, mudaram muito pouco naquilo que é a visão ou construção social da mulher. E, para ir ao encontro das datas que indicaste, as décadas de 50/60 foram a apoteose da fetichização, associada ao glamour das grandes actrizes de cinema, esse mundo criado por Hollywood e replicado por todos no que se considera “cultura ocidental”. Mas também acho que Hollywood não inventa isso. Há algo mais profundo que emerge por todo o lado e define essa dita cultura ocidental moderna.
Creio que vivemos tempos diferentes, o que significa que emerge também um novo tipo de conservadorismo. Cada época ao levantar questões novas cria oportunidades de evolução, corrigindo práticas e pensamento que têm os dias contados. Particularmente, no meu caso, lembro-me sempre da frase do Padre António Vieira: “Só tenho saudades do futuro”.
HMP: Como é que tudo começa, ou seja, como descobres que a Arte é o teu caminho?
JL: Eu descobri cedo que “arte” era sinónimo de “liberdade”. Como era uma criança muito rebelde e sempre arranjei problemas por onde passava, no ínicio, no bairro, depois com as fontes de poder, sobretudo família e escola, o que me leva a pensar que essa rebeldia seria talvez já o primeiro grito de liberdade que estava a dar: eu queria ser livre! Quando me perguntavam o que queria ser, quando era pequeno, dizia sempre “quero ser surrealista”. Eu já sabia quem eram os “surrealistas”, porque havia umas sessões de leitura em casa e sempre me fascinou a loucura, que era uma loucura infantil, das “soirées” surrealistas, as reuniões e as festas. Eu achava que era uma forma “não adulta” de existir, que não tinha limites ou limitações, nem embaraços, e que levavam a liberdade muito a sério.
HMP: O que é, para ti, ser contemporâneo, ser um artista do contemporâneo? Há pressupostos que definem o que se insere ou não numa produção dita contemporânea?
JL: Desde muito cedo interpretei o “ser-se contemporâneo” com uma prática que tenha que ver com o tempo em que o artista vive, que parta daí, na estrita observação desse tempo. E a isso se chama ter o sentido do tempo ou, na prática, a obra ter pertinência. O artista, qualquer artista, pelo menos os que me interessam, têm essa percepção do tempo em que vivem… e o que tantas vezes ouvimos dizer: é “zeitgeist”! Essa é a única forma de se ser contemporâneo.
Isto significa também que os artistas (e excluo os entertainers e os saudosistas), têm um olfato apurado para essa fina franja daquilo que se vive e uma percepção do que “aí virá”! Em conclusão, o artista contemporâneo lê o passado (do qual não se esquece), regista o presente (o seu presente) e percepciona o futuro (qualquer que ele seja), sempre sob o seu olhar, que é particular e que por isso o torna inédito.
HMP: Conta-me a tua estória da História do Crime. Há um desafio na semiótica das palavras que te atrai?
JL: A invenção da palavra é o mecanismo que considero mais sofisticado da criação humana. Eu quando digo “cão”, há um cão que se forma na mente de quem ouve; ou quando digo “iluminismo”, todo um conceito se formata. Essa invenção do ser comunicacional que somos nós, não tem comparação com qualquer outra invenção, por mais sofisticada que tenha sido elaborada. Para mim a palavra é a origem do mundo, curiosamente, “E no princípio era o verbo” está escrito no primeiro capítulo do Genesis.Este projecto, “A História do Crime”, parte de uma questão que me coloquei há muito tempo (o projecto é de 1995!) e onde comecei a considerar que existia uma incoincidência entre significado e significante. Estava convicto que o mundo tinha abusado das palavras e as tinha desqualificado. Era um projecto revolucionário contra a decadência do mundo e por isso se chama “A História do Crime”, que era o testemunho desse mesmo crime.
A palavra tinha-se tornado cúmplice dessa decadência e tinha-se prostituído, tinha perdido o seu conteúdo, estava gasta ou tinha até um conteúdo falsificado. E partiu daí, dessa correspondência falhada, dessa decadência.
Mas era um projecto muito ambicioso e pensei durante muito tempo que seria irrealizável. Não pela sua ideia, que me parecia fundamental realizar e estava definida, mas pela sua produção. Depois apareceu a Priberam que gostou muito do projecto e me ajudou a resolver as questões práticas. Devo-lhes muito, sobretudo o terem simplificado algo muito complexo de concretizar.
HMP: Esperas um espectador emancipado para a tua obra, na perspetiva de Jacques Rancière, ou entendes que ela necessita de mecanismos de mediação para ser penetrada?
JL: Há dois grandes grupos de artistas. Os que é necessário conhecer os códigos de acesso à sua obra, por exemplo Joseph Beuys, ou aqueles que não necessitam dessa descodificação inicial. Eu incluo-me no segundo grupo. A minha obra deve ser percepcionada pelo espectador, ser visionada, lida, a partir de algo que é reconhecido. Dou um exemplo: o mecanismo dos “Dead Ends”, um dos grandes grupos do meu trabalho, que são as placas de autoestrada, parte desse princípio. Todos nós reconhecemos a sinalética da cidade e das autoestradas. Trata-se de signos imediatamente decifráveis. Não há qualquer entrave ao seu reconhecimento. É uma obra que se parece com alguma coisa que já conhecemos, é identificável e já nos cruzamos com algo semelhante.Contudo, há um momento em que o conteúdo, depois de ter sido percepcionado, se revela envolto em alguma estranheza. Há elementos que não eram supostos estar ali. E é nesse momento, no momento de estranheza, que a obra de arte inicia o seu processo. Até aí, a atenção do espectador foi captada sem entraves, sem necessidade de ser decifrada, mas o conteúdo começa a produzir um efeito ao retardador. Há algo inesperado nesse conteúdo. Nesse momento eclode a obra de arte.
JL: O surrealismo foi um anacronismo na minha vida. É assim que eu o vejo. O meu primeiro anacronismo. Foi apenas uma paixão adolescente. O que me interessou, e ainda me interessa, é a vanguarda. São os movimentos de vanguarda, que antecederam o surrealismo, principalmente o Dadaísmo. Esse é o centro do meu interesse. Claro que todos os outros que nascem depois, consequência ou não de DaDa, como de Stijl ou a Bauhaus, ou de eclosão espontânea, como na vanguarda russa, o construtivismo, por exemplo, também me interessam.
Mas quando falo nas vanguardas, há pelos menos 3 ou 4 figuras que me vêm à cabeça e que as considero como estando avant-la-lettre, ou estrelas cadentes do seu tempo e que antecedem a vanguarda. Refiro-me a Rimbaud, a Alfred Jarry, Baudelaire e Arthur Cravan. Eles leram com maior intensidade e distância os tempos que se avizinhavam. Foram eles que inauguraram a modernidade.
HMP: Cinema, literatura, música. A tua obra tem um léxico referencial rico, como se vivesses mentalmente povoado por uma grande ludoteca. O teu processo criativo parte dessa relação de empatia que estabeleces com as obras de outros?
JL: O meu processo criativo parte sempre do tempo, do meu tempo, do tempo em que vivo! Ele resolve e preenche tudo. E o que é que o tempo pede? Essa é a pergunta que é sempre feita sem perguntar. Ela é colocada a todos os artistas, sem excepção. Por isso, nunca parto dos outros para elaborar a obra. Contudo, sou zeloso da minha biblioteca (sempre incompleta), revejo os clássicos de cinema (e não só!). Sou criterioso e fujo do entretenimento. Evito o ruído. Visito museus. Oiço música. Leio poesia. Tudo isso é a base para pensar, para ver mais longe, e ao sedimentar, pode chegar-se mais fundo, mais longe, e ter os sentidos mais apurados.
A cultura coloca-nos sempre à prova e muitas vezes castiga-nos, outras vezes devolve em recompensa. É disso que é feito essa sedimentação. A obra dos outros autores são olhos exteriores que viram e pensaram o seu tempo. Eles são a família que pude escolher. Mas o meu olhar está sempre virado para o meu tempo e o que esse tempo pede.
HMP: Qual o ponto de partida do trabalho “A morte do Homem”?
JL: Esse trabalho faz parte de um grupo alargado de obras que reflectem sobre um assunto crucial para mim. Quando é que nasce a vanguarda e porquê. E todo o trabalho que fiz à volta deste tema deu os seus frutos. A minha tese é que a vanguarda (e Dada em especial), nasce da consequência da 1ª Guerra Mundial. As vanguardas nascem de situações traumáticas. Se teria nascido noutra altura caso não eclodisse a guerra? Sim, teria surgido. A vanguarda nasce sempre quando é convocada. É a anti-matéria.
Os acontecimentos no mundo, são uma pirâmide de cartas, com equilíbrios precários, muitas vezes também mais resistentes do que podíamos imaginar. E depois, há a ruptura do sistema, a queda dessa pirâmide (e é sempre precária!) e assiste-se à queda do império, seja azteca, grego ou romano. Houve sempre pessoas que assistiram e viveram esses momentos. Houve sempre alguém, algum, muitos anónimos, que assistiram à queda da Bastilha.
Este trabalho que referes não é uma metáfora (mas podia ser!). É um local em França, numa ofensiva “em carne viva”, em duas colinas, numa zona que se chamava “Cumières-le-Mort Homme”, no Meuse. Esta zona, que reúne 5 regiões, não tem, ainda hoje, um único habitante. Esse nome podia ser o nome dado a toda essa guerra dilacerante. Podia ser a “morte do homem”. E foi, de alguma forma.
HMP: Consideras-te um otimista ou um pessimista?
JL: Eu acredito que o Homem pode dar saltos na evolução e a luta é pela inteligência. Já o fez em várias ocasiões e começou num passado longínquo. E as várias hipóteses de que há algo malévolo no Homem, uma predisposição natural, eu não acredito. Eu acho que o ser humano, pelo excesso de testosterona, pela memória reptiliana que ainda tem, é virado para a acção, para o engenho e para a predação. Mas acredito que a nossa vocação é muito mais vasta e o carnívoro que habita em nós, se foi uma ferramenta importante na evolução, está a ser sobrevalorizado.
Em tempos longínquos, sendo omníveros e mamíferos, seres pequenos, vivíamos acossados num ecossistema de grandes animais e ferozes predadores. Foi nessas contrariedades que desenvolvemos estratégias, expandimos a inteligência e sobrevivíamos escondidos e receosos perante a impotência e a magnitude do ambiente que nos rodeava. Essas contrariedades criaram o engenho. Esse foi o nosso caldo. Acho que ainda não nos libertamos de coisas que nos fizeram sobreviver, mas depois de termos alcançado este grau de inteligência, essas estratégias mantêm-se activas. Vivemos ainda presos à memória reptiliana. Somos melhores do que isso e, por isso, sou um optimista!
HMP: Como vês o futuro em termos de direitos, liberdades e garantias para os cidadãos?
JL: O mundo está em processo acelerado e nós, porque é o nosso tempo, estamos no meio do remoinho de acontecimentos sem capacidade de afastamento e de os perceber na totalidade. O presente sempre foi um enigma para os que o vivem. E houve sempre presente, num determinado momento, para os Homens de qualquer época. Só quando se olha para trás é que há distância crítica e, só nesse momento, se percebe melhor o que foi esse presente, agora tempo passado.
Cada “presente” colocou perguntas particulares em todas as épocas. Este é o tempo de enfrentarmos as nossas. A curva da evolução nunca foi ou será contínua. Ela é helicoidal… o progresso é feito de retrocessos, de incompreensões, de curvas e de dobras. Depois há a diltação do tempo… de que tempo, ou de quanto tempo precisamos para ver mudanças significativas? O futuro é muito tempo!
HMP: A palavra, na tua obra, é narrativa ou enigma?
JL: A palavra é invenção. Ela é o verdadeiro laboratório. É experiência. Muitas vezes, sinto o meu trabalho mais próximo de experiências de laboratório, onde testo a resistência, a pressão, a fissura da palavra, do que um atelier de arte. É um laboratório de arte, se assim se poderá designar. Dessa forma, a palavra é o meio que tenho à disposição para perceber o mundo.
HMP: O que atrai na criação de novas semióticas com pensamentos pré-existentes?
JL: Se olharmos para o alfabeto percebemos que a sua magnitude é infinita. O novo não é a invenção apenas pura, é a reunião de coisas nunca juntas. É aí que está a criação de energia. São os choques de coisas que existem, que produzem o novo. É como o xadrez, um conjunto finito de peças, cria uma infinitude de possibilidades.
HMP: A cor é simbólica ou apenas plasticidade?
JL: A côr é o meu ready-made. Eu procuro cores que tiveram outra vida. E são essas cores que permitem construir um alfabeto de experiências pessoais, conjuntos de latência. Todas as cores que utilizo têm algum signiificado. Por exemplo, o “amarelo torrado” é a mostarda do cachorro que comia no clube de ténis, quando era jovem adolescente. E esse amarelo traz memórias, as formas das raquetes e as marcas; o equipamento que usavamos; o som das bolas a bater na quadra; os flirts na bancada… e isto é só uma cor! Cada cor, para mim, tem um mundo inteiro lá dentro!
HMP: A “História do Crime” pareceu-te impossível?
JL: Há obras perigosas que podem desequilibrar o mundo. As obras que inventam um mundo novo têm essa característica. Aquilo é dinamite pura. E depois todo o processo técnico, de colocar verbos para um lado, adjectivos para outro, descolar as palavras dos significados e voltar a combiná-las no seu grupo e tudo isto ter de ser feito palavra a palara, parecia-me um trabalho de um escrivão louco, para fazer durante uma vida.
A questão técnica resolvida pela Priberam, que percebeu imediatamente o meu projecto, permitiu-me produzir esse bocado de dinamite em forma de palavras com as suas novas definições, de forma simples.