Vida e obra de Joan Miró – parte I

Auto Retrato, (1917) - Joan Miró

Auto Retrato, (1917). É o primeiro auto-retrato de Joan Miró e o único, para além de um outro em 1919, que o mostra ainda jovem.

Joan Miró mantinha-se calado. Recusava-se a participar numa discussão que, no entanto, era muito animada entre os artistas presentes naquela reunião tumultuosa. A certa altura, Max Ernst, seu colega e vizinho de atelier, pegou numa corda enquanto outros prendiam os braços de Miró. Colocaram-lhe um nó corredio à volta do pescoço e ameaçaram-no de que o enforcariam se não começasse a falar. Silêncio obstinado de Miró.

Nada se sabe do tema do debate que quase custou a vida a Miró. Man Ray, um artista e fotógrafo, imortalizou o incidente fazendo um retrato trocista de Miró com um pedaço de corda, evocador, no fundo do quadro.

Depois da morte de Joan Miró, em 1983, o escritor Michel Leiris, um dos seus melhores amigos, contou que o grupo dos surrealistas troçava facilmente de Miró que personificava, aos olhos deles, o pequeno-burguês correcto e reservado. De facto, Joan Miró gostava da disciplina no trabalho e não era um homem de mulheres. Com regularidade, trocava Paris, a capital cultural, pela Catalunha, sua terra natal, cujas tradições, paisagens e artes populares tinham moldado a sua mentalidade e o seu carácter reservado. Além disso, muitos deles consideravam os quadros de Miró demasiado ingénuos ou infantis. Era para o homem metódico, para o antiboémio que o nó corredio se destinava, mesmo a sério, pelo menos em parte: «Esta brincadeira macabra só podia acontecer a alguém como ele. De facto, Miró teve realmente medo de ser enforcado. A sua qualidade principal era a sua frescura de alma. Falava pouco e apenas dos seus projectos.» Bastante mais tarde, em 1947, por altura da sua primeira via­gem à América, Joan Miró, já célebre, encontrou-se com o famoso crítico de arte Clement Greenberg que ficou muito decepcionado com a entrevista pois o pintor mostrou-se, como sempre, pouco predisposto a falar. Greenberg conta: «Aqueles que tiveram ocasião de o conhecer avistavam um homem pequeno, atarracado, taciturno, vestido com um fato azul-marinho. Tinha uma cabeça redonda, cabelos escuros cortados rentes, uma cor pálida, traços regulares, olhos e movimentos vivos. Era ligeiramente nervoso mas impessoal e distante quando se encontrava na companhia de desconhecidos. Era impossível não perguntarmos a nós próprios qual a razão que tinha impelido este burguês para a pintura moderna, para a margem esquerda e para o surrealismo.»

Retrato de Joan Miró

Man Ray: Retrato de Joan Miró, cerca de 1930 Este retrato de Man Ray ilustra um incidente que teve lugar num atelier em Paris: Como Miró se recusava a intervir numa discussão entre artistas, Max Ernst pegou numa corda, pô-la à volta do pescoço dele, ameaçando enforcá-lo se continuasse calado. Mas Miró manteve um silêncio obstinado.

No entanto, é a alquimia dos seus quadros cheios de sexualidade, de humor, de natureza, de excrementos, de fantasia lúdica e, por vezes, também de angústia e de raiva que o torna tão familiar ao seu público. Graças a Miró, a pintura juntou-se ao reino da poesia. Esta poesia era o fruto de um labor intensivo, porque para Miró que não era um homem de sociedade nem de reuniões, apenas o trabalho contava. Este pintor visionário tentava levar uma vida de operário com família para sustentar. Conseguiu comunicar à sua arte a vontade de ultrapassagem que sempre o animou: se o seu conhecimento privilegiado do mundo serviu de suporte para a sua arte, Miró soube erguê-la até ao nível do mito, num mundo onde verdades e ritmos universais se tornam tangíveis. Talvez seja difícil de compreender quando, diante de nós, não temos um quadro de Joan Miró. Por isso é preferível observar o que este homem pintou e descobrir o que o motivou.

«Se isto é pintura, eu sou o Velázquez»

Para se tomar artista, Miró teve que ultrapassar sérios obstáculos. Primeiro foi a ira e a hostilidade dos pais que quase todos os jovens artistas têm que enfrentar quando, pressionados por eles, para arranjarem uma profissão segu­ra e respeitável, tentam opor-se-lhes. Foi, depois, a oposição de um mundo artístico envelhecido, encerrado nas suas torres de marfim académicas, que explodia contra os jovens que procuravam tomar outro rumo. Nascido em Barcelona, em 1893, pertencia a uma geração que tivera que se libertar de todos os -ismos do século XIX, os quais, como é sabido, haviam liberto a pintura da obrigação de representar objectos identificáveis. No momento em que Miró se preparava para fazer uma entrada que desse brado no mundo artístico, o cubismo tinha já deslocado e recomposto o espaço do quadro e o seu tema e o dadaísmo acabava de fazer eclodir a revolta niilista contra a arte. Os fauvistas tinham suspenso a utilização da cor para evocar a natureza e começavam a utilizar esta para evocar a cor. Numa palavra, o meio acadé­mico era o alvo dos contestatários e já se haviam formado alguns grupos inimigos. Os artistas jovens tinham que escolher o seu campo e, simultaneamente, o seu próprio rumo. Mas as disputas internas do mundo artístico eram uma imagem do declínio geral das instituições e das rivalidades entre Estados para estabelecer uma nova ordem internacional. A título de exem­plo, citemos a Espanha que conheceu quarenta e quatro mudanças de gover­no entre 1898 e 1923.

Se, por um lado, a procura da sua identidade artística foi bastante demora­da, por outro, Miró sentiu, desde muito cedo, um profundo apego à sua terra natal. Ele não era espanhol, mas catalão. O seu pai era ourives-relojoeiro em Tarragona e o avô paterno ferreiro. (Miró herdou o seu sobrenome.) O pai de Miró deixou a sua aldeia natal para ir trabalhar metais preciosos em Barcelo­na e, em pouco tempo, montou um negócio próspero. A mão era filha de um ebanista de Palma de Maiorca. Este avô materno, que morreu muito cedo, era iletrado, não falava senão maiorquino mas conseguiu, à força dos seus punhos, tornar-se num comerciante próspero. Gostava de viajar e chegou, uma vez, a ir à Rússia, de comboio, «algo de importante nessa época». A sua mulher, avó de Miró era «muito inteligente e romântica». As relações do pintor com a sua família eram estreitas embora, muitas vezes, difíceis. Vejamos o que ele escreveu acerca dos pais: «A minha mãe era dotada de uma forte personalidade e de uma grande inteligência. Sempre estivemos muito próximos um do outro. Ela chorou quando me viu enveredar pelo mau caminho. Mas, mais tarde, interessou-se a sério pelo meu trabalho criador. O meu pai, esse, era um realista e o contrário de minha mãe. Um dia, quando andávamos na caça, eu disse-lhe que o céu estava lilás. Ele troçou tanto de mim que perdi as estribeiras.» Apesar de eles próprios terem sido velhos artesãos, os pais de Miró desprezavam a pintura («mau caminho») e a ajuda que davam ao filho era parcimoniosa. Mas Miró recordava com ternura a irmã que lhe dava dinheiro quando ele «não tinha um centavo para comprar tintas».

O Camponês, (cerca de 1912-14) - Joan Miró

O Camponês, (cerca de 1912-14). A pintura contemporânea, em particular a de Van Gogh e a dos fauvistas, impregnou as primeiras obras de Joan Miró. Encontramos ainda esta influência nas cores e na pincelada pesada desta pintura a óleo do início da sua carreira.

Criança sonhadora e fechada sobre si própria, de saúde débil, Miró foi um mau aluno. Recorda-se que era um pouco melhor em geografia, uma matéria figurativa e pouco profunda, do que noutras matérias como as ciências natu­rais. Mas, mesma na geografia, deixava-se guiar pela intuição em vez de utilizar o saber. «Muitas vezes eu respondia acertadamente à pergunta do professor indicando, completamente ao acaso, um ponto no mapa.» Miró teve os seus primeiros cursos de desenho aos sete anos de idade. E, nesse ano, foi para casa dos avós mais no interior da região de Barcelona, cujos habitantes eram camponeses simples. Para ir visitar a avó materna a Maiorca, Miró ia de barco, acompanhado por uma criada. Destas viagens nasceu o seu amor pelo mar. A frescura estival permitia-lhe revigorar-se e libertar-se, durante o período de férias, de certos constrangimentos da casa paterna. Aproveitava estas estadas no campo para observar a natureza e passar grandes espaços de tempo, sozinho, a descansar. Nos numerosos cadernos que Miró conservou, cuidadosamente, anotava com realidade e pormenor, para disso se recordar, tudo o que a sua visão de criança retivera da vida rústica, da arquitectura, das paisagens. Muito mais tarde, voltou com regularidade, de preferência no Verão e no Outono, aos lugares da sua juventude.

Em 1907, Miró acabara de completar catorze anos e estava a concluir uma escolaridade difícil. Era necessário reflectir sobre o seu futuro. O pai insistia numa formação comercial. Miró teve que se vergar à decisão paterna mas pôde, simultaneamente, inscrever-se na famosa escola de belas-artes «La Es­cuela de la Lonja» onde o pai de Picasso ensinara e o próprio Picasso se inscrevera durante algum tempo, nove anos antes. Mas, comparado a Picasso que, nesta idade, dominava já todas as técnicas académicas, Miró era, ainda, um noviço de talento indefinido. Estudou sob a orientação de Modesto Ur­gell Inglada, pintor de paisagens melancólicas no estilo de Arnold Bõcklin, e de José Pasco Merisa, professor de artes decorativas e aplicadas, estimado pelo pai de Miró que imaginava que aquele faria com que o seu filho se interessasse pela ourivesaria. Os horizontes de Urgell influenciaram bastante Miró que, mais tarde, neles se inspirou em alguns dos seus quadros. Pasto incutiu-lhe o gosto pela liberdade artística e convenceu-o a seguir as suas próprias tendências. As artes aplicadas, onde não havia perspectiva e ilusão, interessavam muito, na generalidade, a Miró que podia trabalhar sem muitos constrangimentos. Quando José Pasco Merisa fez com que os seus alunos descobrissem as riquezas e a vitalidade da arte catalã, Miró deve ter ficado admirado com a ideia de poder voltar para o calor do seio catalão depois da frieza de uma academismo rígido.

Concluída a sua formação na escola de comércio, deu por si, aos dezassete anos, escriturário numa empresa de construção e de produtos químicos, a casa Dalmau Oliveres, e abandonou a pintura. Atormentado por esta situação, tem uma depressão que é agravada por um acesso de febre tifóide. A doença acaba por convencer o pai da sua falta de disposição para o comércio e para o trabalho burocrático. Vejamos o que escreveu Miró no seu diário acerca deste período: «Conflito com a família; abandonada a pintura pelo trabalho de escritório. Catástrofe. Faço desenhos nos livros e, claro, sou despedido. Com dezanove anos, entro na Escola de Arte de Galí, em Barcelona onde posso dedicar-me, inteiramente, à pintura. Um prodígio de falta de apti­dão e de incompetência.» Esta escola particular dirigida por Francesc D’A. Galí, era modernista e progressista. Galí, o professor, aberto a todas as correntes da arte moderna, tentava criar uma atmosfera que permitisse a cada aluno conquistar os seus próprios meios de expressão mas, Galí, o antiprofes­sor, proibia que os seus alunos desenhassem quando partia com eles para a montanha. Só a memória visual deles devia reter as suas impressões. A música fazia, também, parte do programa da escola que tinha um grupo coral próprio e organizava concertos semanais. Os estudantes tinham camarotes reservados nos concertos da Sociedade de Música de Câmara, fundada por Galí em Barcelona. Foi graças a estas actividades comuns que Miró encontrou os primeiros amigos entre os seus condiscípulos, entre outros Llorens Artigas, o ceramista, com quem realizou, depois da Segunda Guerra Mundial, os seus trabalhos de cerâmica.

Natureza-Morta com Rosa, (1916) - Joan Miró

Natureza-Morta com Rosa, (1916). Linhas e cores alheias de vida conferem a esta natureza-morta uma forte expressividade. Talvez Miró se tenha inspirado nas naturezas-mortas de Matisse ou Cézanne.

É interessante verificar que Miró atribuiu a dois dos seus professores o mesmo método de ensino: Pasco e Galí tê-lo-ão mandado desenhar objectos sem os poder olhar. Das duas uma: ou eles ensinavam de modo semelhante ou a sua memória sincretista apenas fixou uma como sendo a recordação mais importante dos seus anos de estudo. Miró contou que tinha que reconhecer pelo tacto um objecto colocado nas suas costas e reproduzir-lhe as formas no papel através da sua memória táctil. Uma aprendizagem útil para ele que pretendia dominar a forma, porque embora se dissesse que era bom colorista, considerava-se um fraco desenhador. Tinha consciência de que precisava libertar-se da aparência das coisas para melhor captar e reproduzir as suas formas. Deste modo, o efeito de diversão produzido nele por essa aparência real desapareceu para dar lugar à realidade profunda. A partir de en­tão, Miró abandonou a reprodução demasiado fiel das coisas para dar livre curso à sua pictografia inventiva e melhorar o sentido plástico.

O pai de Miró, assegurava-se, com regularidade, junto de Galí que o seu filho estava a fazer progressos. Galí contou, mais tarde, a Jacques Dupin biógrafo de Miró, que o pai do artista «era um homem simpático, um verdadeiro catalão que tinha o sentido da organização muito terra a terra. Todas as semanas eu dizia-lhe: «O seu filho vai ter êxito, vai ser um grande artista». Apesar de usufruir de uma situação desafogada, a família não mostrava grande generosidade em relação a ele e era de opinião que Miró devia assegurar a sua independência financeira arranjando um trabalho. «Para poder, simultaneamente, ganhar a minha vida e dedicar-me à pintura, a minha família aconselhou-me a tornar-me monge ou soldado.»” Na Espanha dessa época, o serviço militar era obrigatório mas podia-se comprar uma dispensa. O pai de Miró, apenas se responsabilizou por uma parte do dinheiro necessário e, em 1915, em Barcelona, Miró iniciou um serviço curto, fraccionado em períodos de três meses por ano, que terminou em 1917. O resto do ano, passava-o em Barcelona no atelier que partilhava com E.C. Ricart, um amigo da escola da Galí, e em Montroig, uma aldeia da região de Tarragona onde, em 1911, a sua família comprara uma quinta. Jacques Dupin conta-nos que os Miró tinham comprado esta quinta para apressar a convalescença do filho, passada a depressão nervosa e o acesso de febre tifóide. Para Miró, este local, onde recuperara a saúde e onde pôde descontrair-se, manteve sempre um valor simbólico: mais tarde era ali que voltava quando queria meditar e analisar a situação dos seus novos trabalhos. Foi, também ali que tomou a decisão sobre a sua carreira.

Para Miró, Montroig tomou-se um critério de autenticidade com o qual ele podia medir a força de expressão da sua arte. Os camponeses catalães e as suas famílias, os animais, os insectos, as árvores, os rochedos e a terra, todos estavam unidos num universo animista que, a seus olhos, era o próprio reflexo da criação. Tal como muitos artistas da sua geração, Miró quis exprimir algo de eterno e de essencial e, para isso, procurou inspiração nas suas raízes catalãs. Nisso, seguia a moda que consistia na inspiração dos Primitivos para quebrar a linguagem académica das formas. Outros artistas tinham já descoberto como fontes de inspiração a arte pré-histórica ou a arte popu­lar, a pintura dos doentes mentais ou a das crianças. A atitude de Miró era diferente: ele não tinha que deixar o seu mundo porque essas qualidades expressivas e brutas, encontrava-as nele próprio. Para um artista tão introvertido como ele, era algo de bem fácil.

Retrato de E.C.Ricart, (1917) - Joan Miró

Retrato de E.C.Ricart, (1917). Miró parece imitar Van Gogh ou Monet através de uma estampa japonesa de uma tal finura que ela quase desaparece sob as cores e as formas violentas da figura. Joan Miró põe em contraste e associa, num quadro, arte asiática e arte moderna.

É certo que Miró não foi apenas o filho de uns pais burgueses mas, também, um filho de Barcelona na viragem do século. A Espanha, sob o choque da Guerra Hispano-Americana, da destruição da sua armada e a perda das suas colónias de Cuba, de Porto Rico, das Filipinas e de Guam (1898), viveu um período de convulsões fundamentais e de dúvida quanto à unidade nacional. A classe média liberal tinha que admitir que a Espanha já não era uma grande potência e escondia cada vez mais o seu desagrado para com o governo corrupto que manipulava, em seu proveito, a constituição progressista e as eleições. Foram os círculos intelectuais e culturais que desencadearam, abertamente, as hostilidades ao lançarem um apelo à renovação e ao reclamarem a independência política de regiões culturalmente autónomas como a Catalunha e o País Basco. Estas reivindicações avivaram as tendências anarquistas de muitos operários e camponeses espanhóis, partidários de uma autodeterminação e de uma descentralização totais. Este movimento era reforçado, evidentemente, pela industrialização e por uma nova repartição das riquezas no Sul do país onde se abriam minas e fábricas. A renovação cultural era, no entanto, objecto de controvérsias. A identidade nacional dividia-se em identidades regionais e, estas, por sua vez, tinham que reivindicar a tradição ao mesmo tempo que se abriam ao desenvolvimento e ao espírito do sé­culo XX.

Em 1913, na altura em que Miró acabava de fazer vinte anos, o governo, que tinha a sua sede em Madrid, autorizou uma descentralização administrativa. Na Catalunha, o sentimento nacional atingira o seu apogeu e Miró sentiu que, também ele, tinha que redescobrir e renovar a arte catalã. Barcelona era uma cidade cosmopolita, muito viva no plano cultural mas as artes plásti­cas eram, aí, controladas pelas associações oficiais, o grupo influente Les Arts i les Artistes (As Artes e os Artistas) e o Cercle Artístic de Barcelona. Era necessário a Miró juntar-se a esta comunidade. Foi o que ele fez em 1913 ao aceder ao Cercle Artístic de Sant Lluc para aí seguir cursos de dese­nho e poder expor ao lado dos outros membros do grupo. (O grupo Sant Lluc era um grupo dissidente do Cercle Artístic, caracterizado por grandes princípios morais e virtude cristã.) O espírito de renovação cultural manifestava-se no noucentisme, um movimento conservador, em relação ao qual a nova arte catalã devia manter fidelidade à sua herança mediterrânica. Os noucentistas enalteciam a harmonia, a estrutura e a medida, noções em si próprias muito relativas e com referências ao classicismo. Os vanguardistas só a aceitavam com circunspecção: consideravam, por exemplo, o cubismo como a procura de um novo ideal da forma no sentido clássico. Em compensação, criticavam, violentamente, pela sua «monstruosidade» e o seu anticlassicismo o quadro futurista de Marcel Duchamp, Nu Descendo Uma Escada (1912) se representava o movimento.

Retrato de V. Nubiola, (1917) - Joan Miró

Retrato de V. Nubiola, (1917).

Apesar de ele se considerar a si próprio como um artista mediterrânico, Miró recusava as ideias preconcebidas e estava convencido que os artistas catalães tinham que estar abertos o mais possível às influências estrangeiras. Ele próprio, que não tinha passado ainda as fronteiras da Catalunha, mesmo para ir a Madrid, conhecia muito bem as principais correntes artísticas. Lia os poemas, as críticas e os artigos das revistas da vanguarda catalã e francesa. Tinha amigos que escreviam cartas onde lhe contavam em pormenor as suas experiências e impressões de viagem. Visitava, também, as exposições de arte contemporânea, entre as quais as mais importantes tinham sido exibidas na galeria de Josep Dalmau, que apresentara, por exemplo, a partir de 1912, os pintores cubistas. Miró, tal como alguns dos seus amigos, esforça-criar uma forma internacional de arte catalã.

As suas primeiras obras revelam o seu profundo conhecimento da arte contemporânea. Os fauvistas, em particular, esses coloristas expressivos que, com Matisse à frente, levaram mais longe ainda a visão de Van Gogh, tiveram uma grande importância na sua pintura. Miró recorria aos géneros conhecidos, natureza-morta, retrato e paisagem para experimentar e encontrar o seu estilo. Por vezes, a pincelada era ainda tão forte e tão hesitante que o tema se esbatia sem que o próprio quadro com isso se enriquecesse, como é o caso de O Camponês, de 1914, possivelmente a sua primeira obra. Quase que se pode sentir a tenacidade com que o pintor tentou conciliar a cor, a mão, e o olhar. Relógio e Lanterna, uma natureza-morta de 1915, é nesse aspecto mais conseguida: Miró liberta os objectos e as sombras das suas verdadeiras cores. A cor encarnada do tecido no primeiro plano, ao introduzir mais vida e brilho na tela, toma-se ela própria tema. A pincelada, ou seja, o sinal visível da arte do pintor, parece intimidar o pequeno relógio e, também, a lanterna, os frutos e o tecido que Miró dispôs com cuidado sobre a mesa. Os objectos, saídos do seu enquadramento habitual, perderam a «fala». Miró está tão ocupado a pintar que fica insensível à mensagem des­tes símbolos tradicionais da vaidade que ele, no entanto, decidiu mostrar.

Ciurana, o Caminho, (1917) - Joan Miró

Ciurana, o Caminho, (1917). Joan Miró liberta-se, neste quadro, do espaço ilusionista e parece experimentar as teorias da cor.

Considerado de uma maneira retrospectiva, o Relógio e a Lanterna constitui a antítese daquele estilo pessoal que Miró queria descobrir: um espaço de uma ligeira camada de pintura, a partir do qual se destacam objectos que interpelam o espectador.

Norte-Sul (1917) - Joan Miró

Norte-Sul (1917). Esta natureza-morta revela as influências culturais de Joan Miró e comporta diversas referências à arte popular e literatura. A vanguarda francesa é aqui igualmente evocada, sob a forma de revista Nord-Sud, que abriu o caminho ao dadaísmo e ao surrealismo.

Numa carta de 1916, Miró escreveu: «Temos diante de nós um Inverno extraordinário. Dalmau apresenta os simultaneístas: Laurencin…Gleizes que com Metzinger escreveu o livro sobre o cubismo. Os impressionista clássicos e os fauvistas modernos estarão, também eles, presentes na exposição francesa.» Esta exposição francesa que tanto alegrava Miró foi um verdadeiro acontecimento artístico em Barcelona. Essa exposição substituía o grande salão anual das principais sociedades artísticas francesas que não se pudera realizar em Paris por causa da Primeira Guerra Mundial. O catálogo menciona à volta de 1462 remessas. Miró não ficou desiludido: pela primeira vez, tinha diante dos seus olhos originais de Renoir, Bonnard, Matisse, Monet e Redon. Alguns artistas e intelectuais franceses que tinham preferido trocar a França em guerra pela Espanha neutral encontravam-se muitas ve­zes na Galeria Dalmau. Foi aí que Miró conheceu, em 1917, o dadaísta Fran­cis Picabia, que fora a Barcelona para publicar alguns números do «391», o seu influente magazine vanguardista.

Durante a guerra, a Catalunha, de forma geral, foi pró-francesa, do que resultou não só a vinda para Espanha dos artistas mas, melhor ainda, uma certa prosperidade. Tendo sido militar contra vontade, Miró ficava rancoroso quando falava dos Alemães: «O dia mais feliz da nossa vida, nós francófilos, vai ser o da ofensiva vitoriosa dos Aliados. Veremos se se acaba ou não de uma vez por todas com essa banda de borgessos. Depois, vamos para Paris para nos entregarmos aos prazeres da França que Renoir evocou, de forma admirável, nos seus quadros (o seu quadro O Moinho de La Galette, as suas mulheres, os seus nus!).» Nessa época o facto de se se mostrar antialemão era quase considerado com uma prova de simpatia pelas ideias de esquerda.

Foi, também, nessa época que Miró teve a coragem de mostrar os seus quadros a Dalmau o qual lhe prometeu montar-lhe na sua galeria uma exposição individual no início de 1918. Esta perspectiva estimulou-o a trabalhar, ainda, com mais afinco. O fauvismo era para ele uma fonte de constante inspiração. Não que Miró tivesse a intenção de copiar a pintura francesa ou qualquer outra tendência, pois, segundo ele próprio, todos os estilos anteriores, mesmo aqueles que se consideravam ainda actuais, tinham sido impasses. Como explicar, então, o facto de ele se ter deixado influenciar pela pintura francesa? Era, possivelmente, uma forma de rebelião. Apesar da sua lealdade para com o seu país, Miró tinha muita dificuldade em subscrever as ambições conservadoras dos artistas catalães. Estes neoclássicos pareciam procurar um estilo catalão bem definido como um estandarte sob o qual se alinhassem. Apesar da sua juventude, Miró tinha ideias precisas sobre a evolução da pintura moderna e, mais importante ainda, tinha a firme intenção de não as atraiçoar. Além disso, era demasiado individualista para se dedicar a um partido estético, pois, decerto, quereria continuar o seu caminho mas lentamente. Em 1917, Miró então com vinte e quatro anos, escreve a Ricart com quem partilhava o atelier: «Aqui, em Barcelona, há falta de coragem. Quando os críticos de arte que se interessam pelas correntes mais modernas, enfrentam um professor de academia ultrapassado, afundam-se diante dele e acabam por incensá-lo.»

A Horta com o Burro - Joan Miró

A Horta com o Burro, (1918). Estes dois quadros caracterizam-se por um luxo de pormenores que ilustra o amor de Miró pelas pequenas coisas, pelo «ínfimo».

Miró estava plenamente decidido a nunca se comprometer. A sua primeira exposição individual na Galeria Dalmau prolongou-se por três semanas, de Janeiro a Fevereiro de 1918. Apresentou aí 64 telas e bastantes desenhos, todos os trabalhos realizados entre 1914 e 1917. Uma parte foi danificada durante as violentas manifestações organizadas contra a exposição. É muito provável que o Retrato de E.C. Ricart, de 1917, estivesse incluído nas obras expostas. Miró integrava nesse quadro uma estampa japonesa com as cores cintilantes dos fauvistas. A dureza abstracta das listas do fato de Ricart quase que esmaga as linhas finas e fluídas do plano de fundo do quadro. Num desenho caricatural, o rosto lembra os retratos da arte românica pela sua estilização linear e a sua visão frontal.

Num quadro intitulado Ciurana, o Caminho, pintado em 1917, nas colinas perto de Montroig, Miró não recorreu a uma paleta de cores naturais. Realizou uma construção rítmica e colorista onde os traços de pincel se integram por eles próprios em cores claras que se erguem e ondulam em estrias paralelas e lisas. Aqui, Miró quase se libertou do espaço ilusionista, dan­do a impressão de experimentar, nos contrastes abstractos dos amarelos e dos verdes, dos azuis e dos lilases, as teorias da cor. Uma outra obra, uma natureza-morta de 1917, intitulada Norte-Sul, revela a tela de fundo cultural e inspiradora de Miró. Em cima de uma mesa, os objectos, referências à arte popular tais como a canção, o desenvolvimento, a colagem e a literatura (talvez o livro de Goethe sobre a teoria da cor?) estão dispostos em círculo e, no meio, encontra-se o primeiro número da revista Nord-Sud do poeta francês Pierre Reverdy que lhe pôs este nome a partir da linha Mont­martre — Montparnasse do metro parisiense. Ele iniciara a sua publicação com uma homenagem a Guillaume Apollinaire, poeta experimental, original e brilhante, crítico e intelectual que Miró lera e que abriu o caminho ao da­daísmo e ao surrealismo com autores como Tristan Tzara e André Breton. O afastamento geográfico, numa Espanha sacudida por uma violenta crise política, não impedia Miró de estar atento à sua época.

Mais tarde, em 1918, com amigos que partilhavam as suas ideias, decidiu fundar no seio do Círculo Sant Lluc, o seu próprio grupo a que puseram o nome de Gustave Courbet, um pintor cujo radicalismo eles admiravam. Os artistas do grupo Courbet (Miró, E.C. Ricart, J.F. Ràfols, F. Domingo e R. Sala a quem se juntou mais tarde Llorens Artigas) consideravam-se como os mais progressistas de Barcelona. Era seu objectivo ultrapassar «os fósseis e os cadáveres em putrefacção»” dos meios artísticos locais e deixá-los estagnados no mesmo sítio, muito longe deles. Expunham nos locais do Cercle Artístic de Sant Lluc. As suas obras, resplandecentes de vida e de cor, não correspondiam, decerto, ao neoclassicismo que os círculos artísticos conservadores desejavam ver. O grupo Courbet não ligava à aprovação de uns e de outros e, na verdade, pouca teve. Pode-se calcular a que ponto chegara a hostilidade dos neoclássicos pelo comentário de um deles que, ao visitar a primeira exposição, disse: «Se isto é pintura, eu sou o Vélazquez!»

De Julho até ao início de Dezembro de 1918, Miró permaneceu em Mon­troig. Durante este retiro, seguramente reflectiu sobre as suas primeiras exposições e sobre o mundo artístico de Barcelona. A severidade de certas críticas deve-lhe ter parecido, em parte, justificada; de qualquer forma, encetou uma nova fase da sua vida de pintor. Ràfols, do grupo Courbet, que mais tar­de escreverá sobre Miró, chamava-lhe a sua «fase de pormenor». Jacques Dupin, seu biógrafo, falava de «realismo poético». Miró escreveu a Ricart em Julho de 1918: «Comecei a trabalhar há alguns dias. Desde o princípio do mês que estou em Montroig e na primeira semana não queria pensar em mexer numa tela nem noutra coisa qualquer. De manhã praia, para aí me estender de papo para o ar… à tarde, uma excursão ou um grande passeio de bicicleta. Na segunda semana, comecei a pensar em trabalhar e a meio da última semana, iniciei duas paisagens. Nada de simplificações nem de abstracções, meu caro. Neste momento, apenas me interesso pela caligrafia de uma árvore ou de um telhado, folha por folha, ramo por ramo, talo de erva por talo de erva, ripa por ripa. Isto não significa que estas paisagens não acabem por ser cubistas ou fauvistas. Ver-se-á… No próximo Inverno, esses senho­res críticos verificarão, uma vez mais, que persisto na minha desorientação.

O Trilho dos Carros - Joan Miró

O Trilho dos Carros (1918) «Quando trabalho uma paisagem, começo por amá-la, com aquele amor que é filho da compreensão lenta. Compreensão lenta da grande riqueza de cambiantes – riqueza concentrada – que é dada pelo sol. Felicidade de alcançar na paisagem a compreensão de um minúsculo talo de erva – porquê desprezá-lo? -, esse talo de erva tão belo como a árvore ou a montanha».

Joan Miró pintava ao ar livre e, ao mesmo tempo, meditava. Decerto, lera o poeta americano Walt Whitmann, em especial o seu Canto de mim próprio:

«Faço a festa e convido a minha alma; estendido no chão repouso descontraído e observo um pedaço de erva estival.» No campo, aparentemente, preocupava-se menos com questões de estilo do que apresentar a sua querida Montroig. Pintou quatro paisagens dos arredores da quinta: A Horta com o Burro, A Fábrica de Tijolos, A Casa da Palmeira e O Trilho dos Carros. Estas telas caracterizam-se por urna atenção ingénua posta nos pormenores e associam a iconografia hierática dos retábulos góticos a delicadas fantasias ornamentais. As suas cores mudaram, agora são mais naturais e terrosas. Passado apenas um mês, ele descreve essa mudança a J.F. Ràfols: «Esta semana, espero poder terminar duas paisagens… Como vês, trabalho com grande lentidão. Quando trabalho uma paisagem, começo por amá-la, com aquele amor que é filho da compreensão lenta. Compreensão lenta da grande riqueza de cambiantes — riqueza concentrada — que é dada pelo sol. Felicidade de alcançar na paisagem a compreensão de um minúsculo talo de erva — porquê desprezá-lo? —, esse talo de erva tão belo como a árvore ou a montanha. Com excepção dos Primitivos ou dos Japoneses ninguém se debruçou sobre esta coisa tão divina. Apenas se procuram e se pintam as grandes massas de árvores ou de montanhas, sem se escutar a música que emana das flores minúsculas, dos pedacinhos de erva e das pequeninas pedras do ribeiro — tão encantadora. Todos os dias sinto um pouco mais a necessidade de uma grande disciplina — a única forma de alcançar o classicis­mo (o que se deveria procurar — o classicismo em tudo). Considero aqueles que não são suficientemente fortes para trabalhar segundo a natureza como espíritos doentes e recuso-me a acreditar neles.»

Durante o ano de 1919, Miró pintou um quadro desconcertante: um Auto Retrato onde ele ostenta a mesma camisa encarnada que Vicente Nubiola apresenta no quadro que Miró fez dele. Em Miró, dir-se-ia um pijama de seda. A gola aberta deixa ver uma ruga sensual do pescoço e um pequeno tufo de pêlos, enérgico, com a forma triangular. Estranhamente, parece estar quase despido. Comparada com os contrastes violentos do Re­trato de E.C. Ricart , executado dois anos antes, a atmosfera aqui é mais graduada e mais acolhedora. As covas na cara, as rugas e as partes sa­lientes do seu rosto jovem estão como que cinzeladas, os cabelos bem penteados assemelham-se a um capacete oleado.

Mas a semelhança entre a sua maneira de tratar a camisa e o seu «porme­norismo» nas paisagens é, talvez, o objecto mais interessante da tela. Tem-se a impressão que Miró necessita de um fundo abstracto para melhor valorizar cada singularidade: neste caso, o rosto e nas paisagens, um edifício, um burro ou um camponês. Enquanto um lado do pijama apresenta, sem dúvida, o seu tema original, o outro lado faz aparecer um conjunto equilibrado de rugas e de concavidades triangulares, de inspiração claramente cubista. A cami­sa que Miró vestiu simboliza a sua maneira de considerar o novíssimo cubis­mo como uma simples peça de roupa que está na moda vestindo os objectos que pinta. As formas triangulares não parecem destacar-se do conjunto nem, verdadeiramente, fazer corpo com ele. Miró fez muito poucos retratos e este, à excepção de um outro executado em 1917, é o único que o representa jovem. Vemos aí Joan Miró com vinte e sete anos de idade, a viver em Paris desde 1920, decidido a superar todas as escolas de pintura francesa. É, talvez, essa também a impressão que teve Picasso quando comprou o quadro, um ano após o primeiro encontro dos dois.

autoretrato2 - Joan Miró

Auto-Retrato (1919). Joan Miró executou este retrato nos primeiros anos da sua vida em Paris. As rugas e as partes salientes do rosto estão como que cinzeladas, dirigindo-se o olhar do jovem homem para o espectador. Este auto-retrato nada revela, a não ser a determinação do pintor em fazer carreira em Paris.

Uni dos últimos conjuntos onde Joan Miró associa elementos pormenorizados a elementos cubistas é A Mesa (Natureza-Morta com Coelho), uma natureza-morta de 1920, na qual o contraste entre os estilos é mais nítido ain­da do que no Auto-Retrato. Enquanto a mesa e o espaço que a envolve são representados por formas triangulares muito estilizadas, o coelho, o peixe, os legumes, as parras e o galo apresentam, pelo contrário, uma escrita realista. Apenas a bilha, que parece não ter vida, é também estilizada. Os animais parecem espantosamente vivos apesar de, sem dúvida alguma, estarem destinados a uma refeição. O contraste dos estilos reflecte-se, nitidamente, nesta antinomia.

a mesa - Joan Miró

A Mesa (Natureza com Coelho), (1920). Sobre uma mesa de desenho cubista estão dispostos animais e objectos de uma pintura naturalista. Joan Miró não integra, ao contrário do cubismo, as figuras realistas na estrutura geométrica e torna assim intransponível a contradição entre os dois mundos.

Retirado de Min, J. (1994). Joan Miró 1893-1983. Bona: Taschen.

 

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