As 7 Mulheres do Minho

Tomai a resolução de não mais servirdes e sereis livres. Não vos peço que empurreis o tirano ou o derrubeis, peço-vos tão-somente que não o apoieis; não tardareis a ver como, qual descumunal Colosso a que se tire a base, cairá por terra e se desfará.
Os médicos aconselham a não se tocar com a mão nas chagas incuráveis; não é, pois, talvez sensato eu dar conselhos a um povo que há muito perdeu a consciência e cuja doença, uma vez que já não sente dor, é evidentemente mortal. Temos portanto de procurar saber como esse desejo teimoso de servir se foi enraizando a pontos de o amor à liberdade parecer coisa pouco natural.
(…)
Não importa verdadeiramente discutir se a liberdade é natural, provado como está ser a escravidão uma ofensa para quem a sofre e uma injúria à natureza, que em tudo quanto faz é razoável.
Não há dúvidas, pois, de que a liberdade é natural e que, pela mesma ordem de ideias, todos nós nascemos não só senhores da nossa alforria mas também com ânimo para a defendermos.

Em 2020, uma das perguntas dos cibernautas que dominaram os motores de busca foi “como bater numa mulher sem deixar marcas?”, ainda que, segundo a estatística oficial, tenha havido uma ligeira diminuição do número de mulheres mortas em contexto de relações conjugais, bem como do número de queixas por violência doméstica.

Sabemos que no reino do medo, as queixas são silenciadas pela fome. Como sabemos, ainda, que, em contexto de pandemia, foram as mulheres que mais sacrificaram carreiras, ficando em casa com os filhos, numa espécie de cenário disfarçado pela figura jurídica do “teletrabalho”. Precisaremos de mais alguns anos para quantificarmos as regressões de décadas de conquistas femininas consequentes à Covid-19, como precisaremos do dobro do tempo da luta para delas recuperarmos. A pandemia protegeu a sociedade patriarcal instituída e é nossa obrigação ser exemplo no combate contra todas as desigualdades.

Neste sentido, a zet gallery retoma a sua extensão de programação privilegiando a Arte com assinatura no feminino. Foi com este sentido de missão que aceitamos o desafio do Município da Póvoa do Lanhoso para, em conjunto, pensarmos formas de a produção artística contemporânea revisitar a memória e a história, renovando as suas mensagens e unindo tempos e espaços no agora em que é urgente agir.

Em as “As 7 Mulheres do Minho”, exposição que evoca os 175 anos da Revolta da Maria Fonte e que acontece no seu Centro Interpretativo, juntam-se sete artistas de diferentes plasticidades e tecnologias, com formas de sentir individuais e que desvendam, no resultado dos seus processos criativos, o lugar da tempestade interior que é tantas vezes a força motriz do mundo inteiro. A combinação da pintura, de tendência figurativa e autorrepresentativa, de Cristina Troufa (PT, 1974); do gesto dançado em tela de Helena de Medeiros (PT, 1954); da fotografia poética e detalhista de Lauren Maganete (PT, 1970); das imagens em positivo-negativo de Tânia Dinis (PT, 1983); dos recados e das mensagens bordadas de Alexandra de Pinho (PT, 1976); da escultura matérica e de protesto de Ana Almeida Pinto (PT, 1984) e da instalação provocatória de Patrícia Oliveira (PT, 1983), é reveladora de modos de ver e sentir o que é ser mulher e querer ter voz sem calar gritos internos, risos estridentes e fatalismos emocionais. Maria da Fonte é o símbolo dessa ousadia feita protesto, feita luta e é a partir do seu perfil que conduzimos a narrativa expográfica e desafiamos o espectador à Liberdade e à recusa permanente à servidão.

Na Primavera de 1846, há precisamente 175 anos, um grupo de mulheres, sete segundo canta José Afonso, vem da aldeia de Santo André dos Frades, na Póvoa do Lanhoso, empenhadas de foices e gadanhas tradicionais minhotas, insurgir-se contra a nova “Lei da Saúde”, iniciativa de António Bernardo da Costa Cabral (1803-1889), um dos chefes do movimento constitucionalista que, desde 1842, liderava o país. A “Lei da Saúde”, que proibia os enterramentos nas igrejas, incentivando aos mesmos nos cemitérios, não obstante sabermos hoje tratar-se de uma medida essencial para a salubridade pública e para travar a propagação de epidemias, não colheu entendimento no seio de um povo com acicatadas tradições católicas.

Mas, mais do que causar incompreensão, foi o detonador de um descontentamento generalizado, nomeadamente das comunidades camponesas com o designado Cabralismo. O movimento, que ficou conhecido como a Revolta da Maria da Fonte ou a Revolta do Minho, não é consentâneo na historiografia embora as investigações mais recentes indiquem que Joana Maria Esteves, Joaquina Carneira, Josefa Caetana, Maria Angelina, Maria Custódia Milagreta, Maria da Fonte do Vido, Maria da Mota, Maria Luiza Balaio, Maria Vidas, todas podem ter sido a Maria da Fonte, num motim popular dirigido por muitas mulheres e não apenas por uma. A morte de Custódia Teresa, habitante do lugar de Simães, freguesia de Fontarcada, terá sido a gota de água para o povo que há muito se indignava com as reformas Costa Cabral, ministro de D. Maria II (1819-1853).

A rebelião popular feminina tem especial interesse, tendo sido liderada por uma ou por muitas, porque num tempo arcaico de costumes, a Mulher ousou ter voz e manifestar uma posição política, cívica sobre um assunto de interesse geral, para lá das pecúnias do lar a que estava vedada. No seguimento da rebelião, e perante os factos, as autoridades resolveram prender as cabecilhas da revolta, que tentaram exumar o cadáver de Custódia para repor a lei. Foram presas quatro mulheres o que fez crescer a revolta, levando a que centenas de mulheres com foices, chuços e varapaus afugentassem os representantes da Justiça e corressem à pedrada os coveiros. Entusiasmadas com o poder repentino, reuniram-se e decidiram libertar as companheiras quando estas fossem ouvidas pelo juiz.

Assim, após o assalto à cadeia, as revoltosas ficaram eufóricas e, no largo da Fonte, Maria Luiza Balaio convida-as a beber um copo na sua taberna e hospedaria, como era habitual e, imbuídas pelo espírito de Baco, terão dado enormes vivas à Maria da Fonte e fazendo surgir a lenda.

Contudo, o regime era já odiado, pois o Estado vivia dos impostos cobrados ao povo, ao mesmo tempo que concedia monopólios ou fazia contratos com as grandes empresas em troca de empréstimos. Surgiram grandes Companhias, como as dos Tabacos e do Sabão, muitas vezes fachadas de negócios especulativos.

Em abril de 1845, o “imposto de repartições” agravou o mal-estar dos trabalhadores e, no ano a seguir dá-se a revolta popular das mulheres do Minho. A Revolta da Maria Fonte foi assim o mote para a guerra civil da Patuleia, uma rebelião generalizada contra a ditadura e a exploração económica de Costa Cabral, que viria a ser despedido pela rainha, tendo que exilar-se em Espanha.

Os rebeldes queimavam cartórios para fazer desaparecer os registos das tributações, “as papeletas da ladroeira” e nos recontros com as tropas, durante oito meses (de outubro de 1846 a junho de 1847) morreram populares e soldados, cartistas e setembristas. A vitória foi, contudo, dos cartistas, partidários da herança de D. Pedro IV (1798-1834), e em oposição a D. Miguel (1801-1866), e da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822.

Após a vitória constituíram, em 1851, o Partido Regenerador, que se afirmou até ao advento da República em Portugal como o grande partido conservador de direita da Monarquia Constitucional. Depois da guerra civil da Patuleia, que só terminou com a intervenção de ingleses e franceses, Costa Cabral seria reconduzido.

José Afonso (1929-1987), no álbum “Fura Fura”, de 1979, conta a história das sete mulheres do Minho e da Maria da Fonte, como símbolo da resistência feminina e minhota, desde sempre, às injustiças e à opressão. Apropriamo-nos da sua rábula para nomear uma exposição que se enquadra, também, no trabalho de parceria e proximidade que a zet gallery tem levado a cabo junto dos municípios, e em particular dos municípios minhotos, em questões relacionadas com as práticas artísticas contemporâneas e as suas estratégias de programação.

“As 7 Mulheres do Minho” integra, então, obras de Ana Almeida Pinto, Alexandra de Pinho, Cristina Troufa, Helena de Medeiros, Lauren Maganete, Patrícia Oliveira e Tânia Dinis, artistas de diferentes tendências e expressões, com trabalho que explora tecnologias próprias da escultura, do desenho, da pintura, da fotografia e do vídeo e materiais que vão da pedra ao têxtil, passando pelo papel e pela exploração expandida do audiovisual.

A seleção de artistas procurou ser evocativa de conceitos transversais, ainda que subjetivamente, como mulher, voz e revolução, numa epopeia plural e vanguardista capaz de revestir a memória da resistência, protagonizada pela Maria da Fonte, de novo mote para a luta, revisitado foco numa problemática que é de todos e de todas, porque todos e todas devemos deixar gritar a revolta e a vontade por um mundo melhor, mais justo, mais igual, que não diferencie género, raça, geografia, religião ou história social e/ou familiar.

A diversidade de propostas autorais pretende, também, posicionar a criação artística no feminino em territórios tangenciais e metadisciplinares, em que pensamento e ação interagem, mediados por quadros emocionais intrapessoais e distintivos. Cada mulher é uma artista e cada artista um cidadão que intervém sobre o mundo a partir da sua prática, da pedagogia e/ou demagogia da sua visceralidade e do seu olhar.

Por fim, referir que a exposição ficará patente de 7 de junho a 30 de setembro de 2021 e é, ainda, uma aproximação da Póvoa do Lanhoso ao contemporâneo e ao novo, tomando a semiótica da Maria da Fonte como a de alguém à frente do seu tempo, a preconizar ânsias de um futuro melhor.

Helena Mendes Pereira

 

[1] LA BOÉTIE – Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa: Antígona, 2020 (4ª edição). Páginas 26 a 28.

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