A pintura sempre foi uma prática cujos contextos se inscrevem em múltiplas relações com o simulacro e em que a distinção entre arte, realidade e vida quotidiana se dilui na imagem. Tal como avisa Didi-Huberman (2012: 191), no processo de criação e leitura da imagem há que considerar a dialética da imagem, pois “se ignorarmos esse trabalho dialético das imagens, corremos o risco de não compreender nada e de confundir tudo”. A relação de semelhança dialética com o real é uma das condições necessárias para se conhecer e pensar a imagem. O que significa que a associação da imagem com o real é indissociável do seu contexto ou da sua origem. Assim, o conhecimento de uma imagem dá-se por intermédio de outras imagens, outras fontes, e com outros contextos.

O cinema a pintura são os primeiros e mais privilegiados meios que constroem esta dialética das imagens. A migração da pintura para o cinema e desta para a pintura pode ser pensada como modelo de referência e identidade pelo qual uma imagem adota ou empresta similitudes de outros contextos e imagens. Não por acaso, o conceito de montagem que ao longo da História de Arte percorreu (e percorre) o processo de criação da imagem (Warburg, 2010) vem provar que uma imagem não se refere apenas a ela própria. E entre o cinema e a pintura há todo um mundo de remissões mais ou menos clarividente com o que já foi feito ao longo da história das imagens. Por outro lado, a reflexão sobre o diálogo entre pintura e cinema é também uma interrogação sobre os modos de operar a imagem, ou seja, os processos que geram e criam as imagens. Quer no cinema quer na pintura o fazer da imagem é sempre um ato disruptivo. Uma das estratégias disruptivas é o dialogo com as oposições esperar/agir, cheio/vazio, juntar/separar. Nestas antíteses há um entendimento do espaço como cenário onde se constrói um acontecimento, entre luz e sombra, plano e enquadramento. Essa relação implica que num só plano pictórico e/ou cinematográfico existam recortes de tempos e de espaços. É no seu cruzamento que reside o olhar do espectador. Nesta fronteira entre espaço do espectador e espaço da imagem desenha-se uma fronteira: uma impactante linha de sombra e com ela uma fissura entre o visível o (in)visível. Ao tomarmos consciência dessa fronteira estamos, não apenas a transformar as imagens em objeto de pensamento, mas sobretudo a permitirmo-nos aproximar da inquietação do real.

Numa sociedade onde todos os conceitos são questionados, assiste-se a uma maior problematização em termos de (re)avaliações e (re)validações no domínio do real. Vivemos numa época voltada para cada um e imperturbavelmente afastados de nós mesmos. Lipovetsky (1989), constatando que o valor principal da cultura pós-moderna é o individualismo, propõe o processo de personalização de passagem de um individualismo limitado para o individualismo total. Nessa passagem abrimos uma possibilidade de escolher entre o ver e o olhar. É nesta escolha que nos expomos ao real, olhando o que de mais essencial há na procura da consciência de nós mesmos.

A importante abordagem filosófica e sociológica de Baudrillard (1991) sobre a simulação parte de uma distinção crucial entre simulação e dissimulação. Segundo Baudrillard (1991: 10), simular refere-se a uma ausência, ao fingir ter o que não se tem, ao passo que dissimular é uma presença, porque é fingir não ter o que se tem. Tratando-se então a simulação de uma ausência, não existe relação possível com o real, apenas porque “ela é o seu próprio simulacro puro” (Baudrillard, 1991: 10). A partir daqui, poderá afirmar-se que a realidade não esconde nada, já que ela é o próprio simulacro. Confrontar a realidade é sempre um fragmento avulso que a faz acontecer. É um confronto inscrito numa vontade de ultrapassar os limites, de exceder o estipulado; uma vivência que se faz de fábulas e mitos e alterna entre o êxtase e a depressão. O simulacro oculta-nos, confortavelmente, a verdade – a verdade de que não existe verdade. Ironicamente somos armadilhados pela nossa própria consciência, a qual é por nós simulada ao escolhermos a ilusão. A realidade torna-se efabulação. A vida é, por isso, como uma ideia. Uma ideia é apenas uma ideia antes de se tornar realidade. Assim, a nossa fragilidade é tão grande que nos tornamos atores da nossa própria vida.

Vivemos e defendemo-nos com autocelebração da velocidade. Na emergência do tempo nem reparamos na expansão do que pode ser o registo da banalidade. Confrontar a realidade implica, afinal, um conflito com o descortinar da ilusão e, assim, uma outra forma de manifestação, outra forma de se inserir dentro da própria realidade. O meio exterior passa, pois, a ser apenas um ponto de partida para a (re)descoberta de um outro território – e este território será com certeza imaterial. Só assim, por detrás das nossas mascaradas cenografias, podemos ver olhando. E pouco a pouco percebemos que o olhar é uma dor que se descobre. É, porém, nessa descoberta que podemos perscrutar o que há para além do visível: o rumor dos nossos passos. Assim podemos confrontar a realidade e tê-la como a verdade que nos faz acontecer. Anunciá-la é fazê-la no tempo, e é na memória que ela sobrevive. Como salienta Eco (2008), “Mesmo que se encontre os critérios técnico-estruturais, deve e pode-se reencontrar uma relação emotiva e intelectual, descobrir uma visão do mundo e do homem”.

Neste quadro conceptual, a par de uma permanente dúvida e inquietação, está, pois, o ato de criação. “A imaginação não é, como frequentemente acreditamos, abandono às miragens de um único reflexo, mas construção e montagem de formas plurais colocadas em correspondência” (Didi-Huberman, 2012: 155). No seu processo, há aspetos que ficam por dizer, memórias revividas, imagens passadas, momentos que não se recuperam. É esta tentação de encenação do verdadeiro que me move no fazer da pintura. Afirmá-la é percorrer o mundo do que não se vê, do que não se compreende. Na violência e na dureza do gesto que imprimo na pintura há interesses existenciais, impulsos, dúvidas, anseios, todos interligados numa recíproca luta entre o espaço da pintura e o meu espaço interior. Atrito, fricção, repetição. É uma afirmação sob forma de gesto e, por isso, interna à própria representação. Ao repetir, recalco, simulo e escondo revelando. A pintura vela revelando o que deixa para trás.

É à pintura que dirijo este meu pensamento, quando me proponho a ela trazendo como marca da sua força o ato de confessionamento do meu próprio eu. Nesta entrega acredito encontrar uma resposta ao entendimento de mim e do mundo. É à pintura que me dirijo quando é ela que me dá a oportunidade de decidir quem sou e quem escolho ser. Apenas porque preciso dela.

Joana de Carvalho e Silva

 

Referências

Braudillard, Jean (1991). Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio D’ Água.

Didi-Huberman, Georges (2012). Imagens apesar de tudo. Lisboa: IMAGO.

Eco, Umberto (2008). A Definição da Arte, Lisboa: Arte & Comunicação.

Lipovetsky, Gilles (1989). A Era do Vazio. Lisboa: Relógio d’Água.

Warburg, Aby (2010). Atlas Mnemosyne. Madrid: Ediciones Akal.

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