A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS

Por Helena Mendes Pereira

Estas experiências eram fundamentadas na tese de que a estrutura do labirinto fosse sempre a mesma e que, em termos mais gerais e por analogia, a partir do momento em que tivesse aprendido o que fazer na sua vida, o indivíduo teria podido ir por diante, sem mudar as atitudes e hábitos, dado que o dia seguinte seria como o anterior.

Nestes termos, na origem daquelas experiências residia uma tese de estabilidade, isto é aconfiança de que o ambiente, as circunstâncias, tudo o que rodeia o homem iria ficar imutável durante o curso da sua vida, senão mesmo por um tempo infinito. De um modo semelhante, Jean-Paul Sartre cunhou um conceito de projet d’une vie, com o qual pretendia dizer que, uma vez decidido o que fazer na vida e que tipo de pessoa ser, aos olhos do indivíduo todas as coisas se teriam tornado claras, estáveis e absolutamente determinadas como passos a dar e a direção a seguir para realizar o próprio projet d’une vie.

A este propósito, como deve estar lembrado, usei a metáfora do peregrino, aquele que, com o conhecimento exato do mapa da estrada que o conduz ao local de culto, se limita a calcular os recursos essenciais, a força e o número de sapatos necessários para percorrer a distância que o separa daquele local. Todos estes exemplos são agrupados pela tese segundo a qual o único elemento que pode mudar na vida de um homem e no mundo em que ele vive é o comportamento pessoal, enquanto tudo o resto é dotado de uma férrea estabilidade.

Todavia, hoje tudo isto acabou. Já não nos é permitido basear as nossas crenças e as nossas ações num pressuposto deste género, pois as condições da nossa vida mudam constantemente, determinando aquela que defini como modernidade líquida. Modernidade líquida significa que os elementos de cada situação nova aparecerem do nada, e quando aparecem já sabemos que não poderão durar por muito tempo porque serão uma vez mais, substituídos. Trata-se, como vimos, de um processo de modernização compulsiva e obsessiva, cada coisa é continuamente modernizada, e o que hoje é modernizado será novamente remodernizado amanhã e ainda no dia seguinte. 1

Tenho uma espécie de obsessão intelectual baumaniana e lembro-me que, há quase cinco anos, na entrevista em que acabei por ser admitida na zet gallery e no dstgroup, conversei sobre o sociólogo polaco com José Teixeira e sobre este conceito de modernidade líquida que a ambos interessava e interessa.

Zygmunt Bauman (1925-2017), a partir do conceito base de modernidade líquida, pensou os indivíduos e as comunidades dos nossos tempos, o que se define e aceita hoje por ética e moral, a Europa e o seu modelo/ideal democrático, pensou o Amor e, sobretudo, ousou sonhar, antevendo em desejo, um projeto de democracia global em que individual e coletivo, soberania dos Estados e união, são algumas das muitas dicotomias possíveis, não obstante as necessárias tentativas-erro, as profundas desigualdades deste nosso mundo e o difícil, mas necessário, equilíbrio entre Liberdade e segurança.

Ou seja, nascido no seio de uma sociedade que tinha no projeto de uma vida o seu foco e tendo sido discípulo de uma geração de pensadores de génese marxista, Bauman compreende as consequências liberais do capitalismo, criticando sempre a sua selvajaria e os perigos da vigilância a que todos nós nos sujeitamos e da qual dependemos na manutenção da nossa necessidade de controlo sobre tudo aquilo que nos rodeia.

Estudar Bauman e outros pensadores, ajuda-me a refletir sobre esta antítese de uma sociedade líquida, híbrida, que busca a Liberdade e a satisfação individual absoluta, com a manutenção de um conservadorismo julgador que continua a privilegiar valores do passado, a defender estruturas familiares patriarcais e pouco disponíveis para as possibilidades múltiplas do ser humano e a tornar, por exemplo, os modelos laborais tão pesados e ainda tão eminentemente fordistas.

O coabitar destes dois modos, os seus cruzamentos constantes dentro de cada um de nós, acontecem num jogo interior delicado que coloca o livre pensamento como uma tentação e um desafio mas, ao mesmo tempo, que reforça a importância de cumprirmos o plano que, supostamente, nos está já traçado e definido pelo contexto em que nascemos. Tomar partido não é pacífico e cada um de nós passa por momentos na vida em que está no meio da ponte, não a definir a direção, mas a pensar se salta e mergulha nas águas profundas e frias do desconhecido.

As práticas artísticas contemporâneas, a partir das décadas de 1960/70 e, muito em particular, no século XXI com a crescente interseção dos media tradicionais com a tecnologia e com a indústria, refletem este dilema e, sobretudo, são a afirmação de uma multiplicidade de hipóteses e propostas, perfeitamente incategorizáveis e indisciplináveis, ou seja, líquidas. Tenho vindo a teorizar sobre este conceito de Arte líquida, juntando ao léxico baumaniano uma nova extensão. E, na verdade, há muito que queria juntar numa mesma exposição um conjunto de artistas que me parecem explorar, consciente ou inconscientemente, estes pressupostos.

A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS é, assim, uma exposição que desafia os artistas para uma reflexão sobre os tempos e espaços líquidos da pós-modernidade habitada e sobre o equilíbrio quotidiano entre os binómios instabilidade/estabilidade, luz/sombra, ruído/silêncio, artesanal/industrial, caos/ordem, Liberdade/servidão. A exposição foi construída ao longo de váriosanos, na exata medida em que me fui cruzando com estes artistas e que me foi parecendo que as suas produções se enquadravam nas perguntas que, diariamente, me faço sobre esta tal modernidade líquida em que definimos a busca pela felicidade como propósito, correspondendo o nosso modelo de felicidade, ou não, a um projeto de vida mais ou menos duradouro, mais ou menos mutável. Quando percebi que tinha encontrado sete (possíveis) magníficos, tomei mão ao tema.

Contudo, ao longo do caminho, fui escrevendo sobre vários destes artistas e eles próprios também foram escolhidos por me parecerem ser bons construtores de narrativas para as suas obras. Neste sentido, este catálogo reúne textos meus e de vários dos artistas convidados, sendo que alguns dos meus textos correspondem a horas e dias anteriores, coincidindo com os momentos de encontro com estes artistas, como são exemplo as palavras dedicadas a Henrique Palmeirim Lázaro (de 2017) e a João Dias (de 2020).

A coletiva reúne, então, obras de Acácio Viegas (PT, 1976), André Rangel (PT, 1971), Carla Gaspar (PT, 1968), Christian Baes (BR, 1988), Henrique Palmeirim Lázaro (PT, 1995), João Dias (PT, 1983), Martinho Costa (PT, 1977). Esta seleção reflete, em primeiro lugar, alguns dos pressupostos que têm marcado a atividade curatorial da zet gallery que privilegia cruzamentos disciplinares e de gerações de artistas, sem complexos com a, aparente, maior ou menos notabilidade de uns e de outros e procurando, acima de tudo, que esta continue a ser uma casa que cuida e promove aqueles que acolhe como seus artistas, acreditando que a Arte pode (e vai) mudar o mundo e que o contacto com a produção artística potencia reflexões essenciais sobre o mundo que nos rodeia, incitando-os a pensar e despertando o ativista em cada um de nós.

Em A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS permitimo-nos a arriscar na transformação do cubo branco que é a zet gallery, enquanto espaço de exposição. A transformação é imposta pelo denominador comum dos sete projetos apresentados e que inclui a luz, o som e a expansão da fotografia em propostas que implicam a participação do espetador, o que contrasta com o apelo contemplativo da pintura que mantemos como desígnio e permanente novidade. Cor, luz, som, matéria são o desenho de um conjunto que transita entre modelos estruturais de conceção artística que se permitem à hibridez de outras matérias e tecnologias, consubstanciando-se em processos instalativos, previstos para a zet gallery e para esta exposição.

A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS é uma homenagem a Zygmunt Bauman e um exercício curatorial que procura aproximar-se da filosofia, afirmando a Arte como pensamento, ação e estética.

Helena Mendes Pereira

1 BAUMAN, Zygmunt – Europa Líquida. Entrevista de Giuliano Battiston (2009). Funchal: Nova Delphi, 2013. Páginas 81 a 83.

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