O acervo de uma galeria equivale às estantes de uma livraria, numa escala mais pequena. Todos nós temos, em casa, uma estante de livros ou uma parede com pinturas. É certo que estes objetos estarão no sítio que lhes foi destinado e que algures em nós estará uma sensação de posse sobre eles.

Grande parte das vezes nem nesses livros pegamos, mas reconhecemos neles a capa, eles pertencem-nos, já os manuseámos. Outras vezes não acrescentámos um centímetro ao volume da estante sem que o interior haja sido percorrido. Estes dois tipos de colecionadores de livros que Walter Benjamim descreve em “Desempacotando a minha biblioteca” são a base para esta reflexão sobre colecionismo de arte.

A história e a formação de uma coleção terão sempre a ideia de posse como caraterística. O relacionamento de um colecionador com as suas obras de arte passa, em parte, pela forma como as peças foram adquiridas e, também, que vida será, a partir do momento da aquisição, a das peças. Em princípio quando um artista concluí uma obra, e esta é apresentada ao público, deverá a obra ter vida própria e ser objeto de reflexão. Quando está ao alcance da audiência, material ou de conceptualmente, adquirir um objeto destes, as motivações poderão ser uma ligação forte à sua experiência estética ou por uma intuição, como reação à experiência estética dos outros sobre o mesmo objeto.

Objetos de arte são coisas que se pensam, pensam-se a si mesmos. São alvo de críticas, observações, interpretações e até de manuseamentos. São materiais que perderam toda a sua finalidade em nome da falta de utilidade, são coisas que nos reviram as entranhas e nos fazem gostar delas ou não. O colecionador poderá ter uma coleção de acumulação e é este processo cumulativo que faz de uma pessoa um colecionador da desordem; desordem essa que tem a capacidade de se tornar ordem para o interlocutor consumidor. “Assim, a existência do colecionador é uma tensão dialética entre os polos da ordem e da desordem”, dizia Walter Benjamim sobre os colecionadores de livros.

Falarei agora um pouco sobre o colecionador que adquire a partir da sua intuição sobre a experiência estética dos outros. Este colecionador tem geralmente boa visão de mercado, ele busca valorizar as suas posses. Para ele a obra de arte é um produto comercial que é adquirido para vender por um preço mais elevado. É uma espécie de intermediário entre artista e o colecionador final. Este colecionador intermediário tem uma coleção rotativa, nunca tem o mesmo conjunto de peças. Ele adquire, liberta e vai enriquecendo. Há obras que, pelo seu valor científico, merecem uma posição em coleções visitáveis e não meramente privadas, sem espírito social.

Para todo o colecionador será importante, no processo de aquisição, um faro apurado. Datas, nomes de lugares, donos anteriores, formatos, materiais são coisas a averiguar antes de se adquirir uma obra. Não será escusado dizer que, para que a aquisição seja afortunada, a história da arte e o conhecimento de materiais devem ser fatores de estudo.

Feiras e bienais de arte acontecem por todo o mundo. Plataformas, artigos e notícias correm na internet, pesando cada vez mais como máquina pensante. A partir de casa viajamos e adquirimos objetos de arte, basta descobrir o que se quer e com o pressionar de um botão, em poucos momentos, obtemos. Contudo, será imprescindível percorrer um longo caminho de estudo sobre os criadores, como criam e qual o seu valor, para se adquirir algo que seja por nós amado, que nos proporcione uma reflexão e enriqueça o nosso espírito diário. Porém, diz-nos Walter Benjamim, e faço das suas palavras sobre livros, as minhas sobre obras de arte: “De todas as formas de obter livros, escrevê-los é considerada a mais louvável”. Pois bem, adquirir obras de arte, pelo expediente de as trabalhar, demonstra uma grande insatisfação para com o que há para adquirir dos outros artistas. Fazer é adquirir o que se quer sem saber que se queria. Fazer é procurar para a sua coleção um sentido próprio.

O ser humano é um colecionador por excelência. A quantidade de objetos que acumulamos nas nossas casas, com o fim de nada nos faltar, é apanágio disso mesmo. Somos colecionadores pelo excesso: podemos ter trinta chávenas de café e só precisar, no máximo, de vinte. Mas temos as outras porque sim, pois chávenas de café partem-se e na eventualidade de vir mais alguém cá estarão, guardadas prontas a serem enchidas pelo café e esvaziadas porque bebido foi o café. Pois bem, a arte também cumpre a sua função, ela está lá guardada sem que ninguém a olhe, e quando a observam e tentam descobrir um sentido, uma função mental, torna-se patente e torna-se latente para os que não observam e a vêm só como produto decorativo.

Certamente que, na demora em frente à imagem e no cansaço dessa observação, a obra se irá manifestar olhando-nos também. É na forma clara e evidente que quando o que adquirimos nos olha que apreendemos que todos os olhares das obras que obtivemos traçam o palco e o cenário do destino enquanto colecionadores que nos tornamos.

AlbertoRodriguesMarques

Assistente de Curadoria

Comments

comments