Em 1996, Jean Baudrillard (1929-2007) inicia com “Le complot de l´art” (A conspiração da arte)¹ um processo de crítica e reflexão sobre os caminhos da arte contemporânea e das ditas vanguardas que coloca o foco no facto de a Arte ter perdido a sua capacidade ilusória, realimentando-se em si mesma e tornando-se transestética, como a sociedade no seu todo. O livro do filósofo francês é o mote do desafio curatorial, configurado como a porta de entrada da zet gallery em 2020. Bárbara Rosário, Daniela Pinheiro, Grécia Paola, Ivan Postiga, Maria Cunha, Maria Regina Ramos, Natacha Martins, Rafael Oliveira e Raquel Oliveira protagonizam assim uma exposição em que se questionam os limites da mimésis, do campo semiótico e iconoclasta na obra de Arte e, ainda, as possibilidades de apropriação do real que marcam o campo da produção artística contemporânea. Os nove autores têm como denominador comum o presente ou passado recente enquanto estudantes da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto e o facto de a sua seleção para esta exposição procurar evidenciar o caráter da escola, a sua pluralidade de formas de pensamento e a resistência de um saber fazer, de um domínio técnico, que combina visões conceptuais com diferentes ângulos e que nos diz que a pintura, o desenho e a escultura, enquanto disciplinas, continuarão a merecer ser a base, o ponto de partida para a criação de ilusões e de conspirações imagéticas.

A CONSPIRAÇÃO DA ARTE desenvolve-se a partir do mapa pictórico e geométrico de Daniela Pinheiro, numa plenitude de cores planas em degradé semântico, propõe-nos a cor como jogo de manipulação do que se vê. É uma malha, uma ordem que organiza o caos ou um código que esconde a conspiração, o embuste. A figuração domina em adjetivações pesadas. Violência. Rafael Oliveira explora a degradação do espaço construído dada pela doença, pela perda e pela morte. As suas obras revelam uma tremenda maturidade técnica e obrigam-nos a um exercício de distanciamento temático que nos coíba do mergulho no sombrio e no denso da sua narrativa. Maria Cunha tem a rudeza e o feio do detalhe nos corpos relevados. Mais do que estudo anatómico, é uma amortização da sombra de nós mesmos pintada densamente e criteriosamente com a forma a nascer do negro, com a luz dos dias que são corpo a nascer da noite. Natacha Martins devolve-nos a uma espécie de expressionismo moderno, agressivo e assente numa palete de contrastes. Sentimos-lhe o traço e a precisão, a respiração do pincel e o movimento da tinta. Há uma combinação de naturezas mortas e de corpos vivos, em êxtase, que nos transportam para o campo da performance que a artista também explora como expansão da investigação sobre as faculdades vitais do corpo, numa espécie de pirâmide de Maslow interpretada. Raquel Oliveira autorrepresenta-se, perfila-se, permuta-se e transfigura-se, deixa-se possuir pela estranheza de outros objetos ou corpos que lhe alteram a tez, exprimindo perceções interiores (inter)pessoais. A Arte como exercício de autoconhecimento, de catarse e de confissão. Apropriação. Na diversidade de suportes, ainda que mantendo o registo bidimensional, Ivan Postiga traz-nos um universo gráfico complexo, onde o quase natural se funde com quase sugestões de figuração humana ou animal. Ousado, pauta com a cor composições de preto e branco, listadas ou planas, de grande rigor técnico. Maria Regina Ramos, também com uma proposta seriada, pinta universos cósmicos, selvagens e ampliados, igualmente a partir do degradé e da mancha que constrói a forma. As suas obras, de grande força plástica, abordam o espaço e os seus recantos e desafiam-nos para um campo expandido da observação para lá da contemplação, quase que sendo urgente que se performe uma forma de olhar. Experiência. Deixamos a pintura para encontrarmos Bárbara Rosário e um conjunto de ensaios sobre as matérias, os objetos e a experiência do corpo enquanto termo aglutinador da natureza de todas as formas escultóricas. Obra densa, tecnicamente ambiciosa e rica nos seus capítulos e leituras, aproxima-se dos quadros conceptuais, investindo em jogos de luz, em combinações de modos de fazer e ver e propondo uma abordagem expográfica sempre diferente. Por fim, Grécia Paola propõe-nos, com o desenho e a escultura, um ver e um pensar sobre o ver, numa produção interior e íntima, persistente e desmesurada, revestida de uma intensidade visceral. Não é obra estanque. Não. Exige de nós. Pede-nos a alteração das ergonomias e a experiência do desconforto. Não há tábua rasa quando, de novo, de fala da doença, da perda e da morte; quando se indaga o universo e se colocam na criação todas as perguntas e todas as respostas, sem consolo e com certeza do embuste e da conspiração bilateral do jogo de experimentação da obra de Arte.

A CONSPIRAÇÃO DA ARTE procura lançar a rede ao mar a partir da grande força semiológica das reflexões de Baudrillard, que refutam o pensamento científico tradicional e têm por base uma filosofia que aposta na virtualidade de uma realidade construída, uma hiper-realidade em que se discute a estrutura do processo em que a cultura de massas produz imagens, evangeliza e induz. No exercício quase clássico da expografia, expõe-se a Academia e os seus caminhos e, sobretudo, provoca-se a reunião, a conspiração e o deslindar do embuste filosófico, estético, vivencial, a ilusão do consolo, na reflexão de Stig Dagerman (1923-1954). ²

Helena Mendes Pereira
curadora da zet gallery

¹ BAUDRILLARD, Jean – The Conspiracy of Art. South Pasadena: Semiotext(s), 2005.
² DAGERMAN, Stig – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer. Lisboa: Fenda, 1989 (1ª edição).

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