A graça da metafísica

Valter Hugo Mãe

 

  1. A arte é pura manifestação da metafísica, dimensão essencial que alude ao que se insinua na matéria mas é sobretudo ansiedade por espirito, uma espécie de simulação de alma para nos conferir o verdadeiro tamanho da existência e a transcendência possível. Começo por anotar esta breve hipótese porque me ocorre a “máquina de roubar a metafísica” inventada no meu romance, através da qual medito acerca dessa certa espiritualidade daqueles que não são crentes mas que inevitavelmente concebem como a essência da mais profunda ideia de vida se torna obrigatoriamente um reduto do imaterial. “a máquina de fazer espanhóis” é um estudo para o desaparecimento e é moderando a angústia que procura aceitar que muito do que significamos e fazemos se vocaciona ao eterno (ao físico, presente, vigente e até útil) menos nós mesmos. Somos o lado perecível, efémero, da ideia da eternidade. Somos a matéria-prima da eternidade e seu combustível e desperdício. Mas é nessa narrativa que perdura e supera o tempo, nem que apenas algum tempo, que fazemos a leitura do que pode conferir justiça à evidência de estarmos vivos e o que pode trazer de revelação para apaziguamento de nossa deriva e até ofensa por não haver cura nem garantia de inteireza ou felicidade. Não há como não morrer e ir sofrendo até lá.

 

  1. Escrevi este romance como bizarra resposta à morte do meu pai, que aconteceu a 9 de janeiro de 2000, quando ele chegava quase aos 59 anos de idade. Quis inventar-lhe o resto de tempo e a transcendência, que é isso de demorar um pouco mais nessa narrativa que nos precede e nos sobreviverá. E quis o que queremos de todas as obras de arte, que o livro me inventasse uma fantasia para me acompanhar, uma espécie de pai feito de páginas e que falasse ainda, tivesse ainda uma morada, fosse ainda equação activa, impossível de desprezar. Claro que funcionou. Este romance, que não conta a vida do meu pai mas imagina um homem mais velho como o meu pai poderia ter sido, é o senhor Jorge Lemos com um título na capa, um corpo de papel que se multiplica a pedido.

 

  1. Para um autor, os seus próprios livros são pensados enquanto indestrinçáveis da restante realidade. Eles são verdadeiríssimas estações da vida. Comportam-se como épocas profundas de meditação e crescimento, correspondem a uma educação e a um gasto da vida que nos passa a identificar. Acabam por ser todos autobiográficos, eventos da nossa biografia mais genuína que se desimportam com a mentira factual que podem contar e se entregam como um todo, outra verdade, que já nada pode ser mentira porque existe, está convocado no texto. O leitor é alguém que procura observar esse vastíssimo, diria infinito, espaço mental e emocional que o livro evoca, e ele precisa de se intrometer, confundir, com o autor para que a leitura seja também possível, plausível, feita sua biografia também. Contudo, é na intromissão de outra criação que a obra encontra sua dimensão mais extensa, seu efeito mais temível e apetecível ao mesmo tempo. Quando a obra é matéria para outra obra, desdobrada pela sensibilidade de outro criador, o autor é posto diante de sua própria vida e morte. Ele é levado ao lugar onde seu efeito opera e, de certo modo, o supera. Esta exposição é, pois, em algum sentido, sinal da minha morte.

 

  1. Vi um rosto desenhado pelo Juan Domingues numa página da internet e não acreditei no modo como o cabelo era tridimensional, subido acima do vidro do ecrã como se de facto a luz pudesse ser tocada. Era o rosto de perfil de uma mulher jovem, belíssima, e havia algum efeito de molhado, o cabelo molhado passando pela frente do olhar. Foi há muito tempo. Escrevi, no balanço sentimental que me propus fazer no fim de dezembro, que aquela imagem de Juan Domingues foi a que mais me obstinou naquele ano. A obra que mais se inscrevera no meu espírito, solicitando resposta como se me perguntasse algo, mesmo que eu jamais entenda o quê. Lembro de julgar que os cabelos dos desenhos do Juan Domingues só poderiam ser parentes dos de Salomé desenhada por mestre José Rodrigues.

 

Hoje, é com profunda maravilha que assisto à gigante visão de Juan Domingues a partir do meu romance. A mesma inexplicável capacidade, a poeticidade do traço, a emotividade nos olhares, as figuras do Juan Domingues são afinal todas provas de humidade, existe quase um suor nas suas peles de tão presentes, intensas, feitas do que nos convence de serem gente de verdade. É muito incrível como o faz. Vejo a altura dos grandes mestres de outrora, as opções intemporais, o rigor das formas, a sinceridade destemida na representação humana. O meu livro está mais do que agigantado pela oportunidade de se tornar visual, está vivo. Saiu da palavra e é mais perto do físico, dessa ansiedade, como dizia no início, de ser presente, material, estar para sempre.

Há algo de caligráfico na maneira como o Juan Domingues aborda a imagem. O desenho é uma estrutura muito assumida, vêmo-lo e pressentimo-lo na ossatura de todas as peças e isso é parente imediato do mesmo gesto que busca a letra, a palavra. O domínio do desenho é o domínio de todas as formas, como se fosse a percepção da engenharia precisa do mundo. É muito como se pretende a força de uma frase, que revele com toda a lucidez possível tudo quanto se esconda e seja, afinal, agente do mundo. Sinto que estamos à procura do mesmo mistério. Criando nosso poema mas deitando mão do rigor disponível nas nossas ideias. Como se nos armássemos de dúvidas para arriscar conquistar nem que a mais ínfima certeza. Nem que apenas a certeza de isto tudo ter valido a pena.

 

Valter Hugo Mãe

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