A IGREJA DA MINHA ALDEIA

As fotografias da memória que tenho de criança, da igreja, são de uma igreja pequenina e de um cemitério ao lado desta igreja tão pequeninha e uma outra de arqueologia de defuntos que migraram do cemitério vizinho da igreja para outro cemitério maior e mais cemitério. Tenho mais fotografias mentais. Tenho fotografias do tapete de flores que se fez dali da casa do Tino até à igreja para receber o novo pároco – o padre António, um jovem padre – e das cangostas e da procissão de todas as idades que se fez em cima do tapete de flores às cores até à igreja.

Não tenho fotografias das entidades, mas estiveram presentes entidades que não nos habitavam nem habitavam Fraião. Naquele tempo existia regedor. Chamava-se Toninho. Toninho não. Toninho regedor. Não sei se existia presidente de junta ou junta de freguesia. As pessoas importantes eram importantes por terem cara de más e de nós lhes termos mais medo. A importância tinha, naquela altura, encenação e pose. Tenho fotografias meio difusas da catequese e das confissões, das confissões lembro-me mais. Não apreciava relatar a minha vida íntima. Na igreja da minha aldeia fiz o primeiro discurso teatral da minha vida. Tenho fotografias de memória e fotografias de papel de fotografia pobre em papel pobre. Tudo era pobre e pouco belo, naquela altura.

No Natal a natureza era bela. E lembro-me do Sr. Firmino. O Sr. Firmino era importante, mas não era mau. Lembro-me de subir para um banquinho que serviu de palco para que a plateia me visse. Lembro-me bem de que correu bem, o discurso. E lembro-me do Sr. Firmino a governar o altar como governava a sua alfaiataria. Na sua alfaiataria não fazia apenas fatos, faziam-se calças a solo. O Sr. Firmino fazia riscos nos tecidos, riscos que num museu faziam hoje de instalação. Também acolhia o futuro dos jovens através dos jovens jogadores dos Maikes. Deu acolhimento ao nascimento dos Independentes, numa cisão acontecida a partir dos Maikes, acho que foi cisão.

Depois desse ato discursivo a minha mãe, que tinha a mercearia mais sofisticada de Fraião fez um pouco de negócio mais, exatamente porque os fraionenses me queriam dar os parabéns em espécie com bolos, sandes de queijo e marmelada e laranjada do Sameiro pelo discurso da comunhão solene.

Tenho mais fotografias não fotografadas. Da ampliação da igreja pelo empresário de construção civil de Fraião Sr. Luís e pelo Alfredo. Nesta altura o Sr. Luís ainda tinha como sócio o Sr. António Lima. Fizeram a ampliação da igreja e fizeram outro altar. Moderno para a época. Um altar com habitação em alvenaria rebocada para os santos e com umas cornijas em argamassa muito bem executadas. Mas na realidade tudo feio e pobre. Era o que era e o muito feio foi feito com imensa generosidade que todos agradeceram e continuam a agradecer.

E assim, ausente de beleza, a igreja da minha aldeia foi envelhecendo mais.

Até que, deu-se-me ver incomodado com o declínio de um dos retábulos, mesmo velhinho, a cair de exaustão. O Retábulo de Nossa Senhora do Rosário, devoção maior do meu pai.

Lembrei-me de ligar ao Tino, o Constantino Leite. Um responsável na fábrica da igreja pelas obras e manutenção e outras funções mais que não sei bem explicar. Disse-lhe que queria oferecer a reabilitação do retábulo, mas ninguém poderia saber – que seria eu a oferecer o retábulo, mas não queria que ninguém soubesse. O Tino disse que sim. Eu não acreditei. Um segredo na fábrica da igreja de Fraião?

Contatei o Gabinete de Conservação e Restauro do IHAC. Pedi um orçamento. Adjudiquei. Paguei o adiantamento e, assim se iniciou o restauro.

Chamou-se o Luís de Sousa para ajudar a desmontar e depois instalar o retábulo. Nestas andanças, chama- se sempre o Luís de Sousa que apurou um enorme sentido crítico e de bom gosto. Montada a obra artística a surpresa: ficou linda e tão linda que o resto ficou mais feio do que estava.

Não foi para isto que se fez a beleza, para tornar a vizinhança feia. Antes pelo contrário. Temos de continuar a construir caminho, concluímos. Chamou-se um arquiteto, que trabalha com a diocese, falamos com o Cónego José Paulo e lá chegou uma proposta avaliada por mim, pelo Tino e, pelo Luís de Sousa e pelo Sr. Padre António que nos ia deixando martelar e forjar ideias.

Fizemos duas reuniões mais e as ideias trovejavam muito. Preciso de entendimento da minha sensibilidade. Procurei o Nuno K, o arquiteto com quem tenho construído ideias que dão origem a instalações. Entendemo- nos com facilidade. Há na estética do Nuno uma nobreza e uma arte especiais. As construções poéticas deram lugar a propostas artísticas que transformariam a igreja da minha aldeia. De cada vez que acontece este tipo de encontro, com o sublime, a leveza e a beleza e a atração por mais demanda, surge como a próxima meta. A Bárbara e o Péssimo encarregar-se-iam de dois painéis cerâmicos, cozidos no atelier da Bárbara, e dos vitrais. O Óscar ficaria com a carpintaria artística e mais. Mais tarde, impôs-se a reparação dos bancos da igreja e a construção da mesa altar. Os conselhos técnicos do Óscar são de enorme valor e ajudaram-nos a progredir sem cair.

O Portela é um artista. O aço corten na alçada do Portela é um bailado nos alçados das construções e daí a concretizar o que se idealizou para o acesso à torre e o revestimento da torre foi um passe de magia. O Portão recupera-se e forra-se a cobre, assim se consensualizou. Os bancos exteriores e a pedra de entrada em mármore, decidido. Pedra inteira e grande, na entrada; perfeito. A Porta de acesso seria o altar do exterior.

Entretanto, o Cónego José Paulo tinha encontrado um altar que se ajustava para substituir o nosso altar de argamassa. Havia que o recuperar. Recuperou-se e instalou-se. Mas o telhado tem de ser substituído, diz o Luís de Sousa depois de ter organizado a viagem das paredes à sua fase inicial, da alvenaria original, alvenaria pobre com um arco nobre. Assim se construiu o telhado. E que tal uns caleiros e rufos de cobre? Pergunta o Luís de Sousa depois de fazer planeamento emocional com o Tino para o cozinhado vir arranjado e prontinho para eu decidir. Pois não! Vamos a isso – tinha de dizer, sim. Trabalhou-se o coro. O coro, o espaço do coro, ficou lindo. Escolheram-se luminárias e o som, o Paulo Ferreira sempre imprescindível, que tinha de falar com a Viúva Lamego, com a parede de azulejo viúva lamego da parde lateral da zona do altar.

O Altar. A mesa do altar seria construída tendo como base a pedra de toda a vida da igreja, que lá existia. Uma pedra mais cilíndrica do que cónica e o único apoio do altar num desenho do Nuno K. A arquiteta Joana do departamento de conservação e restauro aturava, com santa paciência, desde o inicio, desde o primeiro retábulo, que eu ia oferecer em segredo, as nossas propostas e aceitou mais uma encomenda: restaurar o quadro que estava encostado na igreja vizinha. Restaurou-se o S Bento e S Brás e colocou-se na igreja da minha aldeia.

Só um aparte. A igreja conhecida pela igreja nova de Fraião, que o meu pai ajudou a conceber e a construir, não poderia ficar prejudicada com a saída de S Bento e S Brás. Quer dizer. Tinha entrado na igreja nova tendo saído da igreja velha, da igreja da minha aldeia. Mas, mesmo assim, e porque quem dá e tira para o inferno gira, entendeu-se fazer uma troca justa já há muito arquitetada entre mim e o Péssimo; a pintura da Via Crúcis.

Pois, vamos dar mais acabamento à igreja nova com a doação, da via-sacra – 14 estações de cristo. Uma troca justa com quadros incríveis do Alberto Péssimo. Luís e Tino e Sr. Padre António, concordaram. Vamos parar para respirar. As pinturas do Péssimo são perfeitas para a nova igreja. Como se fosse pouco, ainda, o nosso amigo e poeta Nuno Higino fez uma oração para cada estação que são a beleza em si, o meta texto das estações pintadas do Péssimo e arrepiam todos os sentidos.

Olhemos para o exterior. Vamos bojardar os muros exteriores e dar um arranjo nas calçadas. Ponto.

Não, não terminou. Temos de contar esta história e inscrever o papel de cada um num livro.

Convidei a Bárbara para conceber um livro sobre a história e o restauro da igreja da minha aldeia. A Bárbara pediu textos. Fez reuniões com quem mais sabe da igreja, com o Sr. Padre António – reuniões de história e de cultura, penso eu, e constatou a Bárbara. Contratou-se um fotografo e depois outro para fotografias profissionais e assim a designer partiu para a construção de um livro para memória futura de todos nós. Esta é arte da história, ou melhor a parte da história da recuperação da igreja da minha aldeia a partir da recuperação de um retábulo e do segredo que não se devia ter pedido. A restante, leiam-na neste livro.

Não sei bem como se agradece aos meus irmãos e ao grupo de trabalhadores da dst por permitirem termos uma empresa que pode fazer o bem desta forma, tão bela e tão verdadeira.

José Teixeira

Presidente do Conselho de Administração do dstgroup e fundador da zet gallery

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