Porque a verdade é que fui eu próprio que deixei a casa dos sábios, batendo com a porta atrás de mim.
Demasiado tempo esteve a minha alma faminta sentada à sua mesa; eu não sou feito como eles para petiscar o Conhecimento como quem parte nozes.
Amo a liberdade e o vento que corre sobre a gleba fresca; gosto ainda mais de dormir em cima de peles de bois do que sobre as suas honrarias e das suas dignidades.
Sou demasiado ardente, demasiado consumido pelos meus próprios pensamentos, falta-me muitas vezes a respiração. Então preciso de sair para o ar livre, longe de todos os compartimentos empoeirados.¹
Cristina Troufa (n.1974) nasceu no Porto em ano de Revolução, no ano em que Sophia de Mello Breyner escreveu que era aquela a madrugada que esperava, a primeira da construção da UTOPIA da Liberdade. A zet gallery habituou já os seus públicos ao cruzamento entre disciplinas, nomeadamente ao pensamento sobre as Artes Visuais a partir da eternidade das palavras dos poetas. Na História da Arte multiplicam-se os artistas que trabalharam a auto-representação. Poucos foram, contudo, aqueles que transformaram o seu corpo na sua obra, propondo-nos uma reflexão sobre a multiplicidade das coisas que somos, simultaneamente e ao longo da vida, e questionando-nos sobre qual o espaço da verdade existente na imagem. Cristina Troufa, como Helena Almeida (1934-2018), é sempre o foco da sua própria pintura, alargando-nos o ponto de fuga para uma ideia mais abrangente da Mulher, das suas forças, fraquezas, tentações, misticismos, dúvidas e delitos. A utopia feminina é a utopia de Cristina que se cruza com a utopia de Sophia, numa meta-leitura entre poesia, imagem, música e celebração. UTOPIA é, assim, um exercício de curadoria em que a narrativa se desenvolve a partir de uma seleção de poemas de Sophia de Mello Breyner (1919-2004), aproveitando-se o mote para prestar homenagem à poeta em ano de centenário do seu nascimento.
Havia um mar de palavras de Sophia para começar a escrever Cristina, mas Cristina é uma dessas mulheres que traz o mar nos olhos pela vastidão da alma e que carrega de poesia os dedos, as mãos do desenho e da pintura que hoje celebramos e o riso que a desvenda para além do tempo. Por isso, partimos daqui para contar das quase sete dezenas de obras, entre pintura, desenho e instalação, produzidas desde 2007 mas com enfoque nos últimos três anos, que integram UTOPIA, a exposição individual sonhada. O trabalho da artista, parafraseando-a, é “algo espiritual, uma viagem entre várias vidas e diferentes estágios no tempo, na mesma vida, coexistindo lado a lado, através de estratégias de auto-representação que, no limite, questionam o sentido da vida. O meu trabalho é sobre a minha vida, sobre mim e sobre as minhas crenças.” Li como de um sopro e parei no ponto em que, antes do relato, Cristina afirma que a sua plasticidade é predominantemente “figurativa surrealista”. Pus-me a pensar. Quem pinta, quem escreve, tende, em algum momento, a surrealizar-se, a sair em busca dos espaços de automatismo psíquico que nos permitem uma aproximação ao subconsciente e, porque não, à verdade, pelo menos à verdade de nós mesmos, sem medos, amarras ou indefinições genéricas. Vivemos num tempo e num espaço societário em que é proibido sofrer, em que somos incentivados ao anti-sentimento, à ausência da fragilidade. O tempo da analgésico-dependência. Não importa perceber os porquês e as causas, apenas anular as consequências imediatas, camuflar. Cair é proibido, falhar é alvo de todas as recriminações. Chorar é histeria, gritar é atentado ao pudor. Melhor sufocar, conter, não pensar, não refletir, fingir. Gonçalo M. Tavares (n.1970) designa o epifenómeno como “patologia intelectual” e sintetiza:
Entre a ausência de dor e a inteligência, o ser humano, o ser racional por excelência, o ser das invenções, da filosofia, da arte, da tecnologia, optaria, provavelmente, arriscamos, pela ausência de dor. Em suma – e esta é uma das sínteses essenciais – provavelmente, no Homem, o medo da dor suplanta o medo da estupidez.²
Na auto-representação de Cristina Troufa não sentimos o medo da dor ou da exposição das fraquezas. Deparamo-nos com a inteligência e a crueza dos sentidos, com a agressividade e a doçura das expressões, com a violência e a candura dos gestos, com o erotismo e o pudor dos corpos. Por vezes, Cristina multiplica-se, como numa sucessão de frames, criando-nos a ilusão de movimento, em composições predominantemente triangulares e de estilo clássico, por vezes barroquizadas nas iminências do claro-escuro que nasce do proveito do suporte, policromado em plano ou na utilização das suas características naturais, tela ou papel, a partir do qual se desenrola a figuração. Com uma paleta eminentemente pop, ainda que com variações de luz mais intensas, Cristina Troufa revela-se no exercício da cor plana, estando parte da originalidade do seu trabalho na forma como a figura brota da base, num jogo do dentro para fora, conceptualmente aprisionando corpo e alma e, ao mesmo tempo, colocando o clamor da libertação em cada olhar. Sobre a paleta, ainda, em UTOPIA apresentam-se um conjunto de trabalhos de natureza abstrata, que revelam o caráter experimental da produção de Cristina mas onde já sentimos a preferência por um leque determinado de cores e respetivas variações. O processo parte, por sua vez, da fotografia que, em algumas situações, cabe ao companheiro de vida, Carlos, concretizar. Como em Helena Almeida, inegável referência para Cristina Troufa. Ou então é de Cristina toda a aventura, até ao clique final. A pintura tem, assim, pré-existência na performance, se quisermos. A partir daí, Cristina explora a combinação de posições e expressões até partir para o exercício da pintura, com uma base forte no desenho, daí a sua evidência nesta exposição, permitindo aos públicos mergulhar nos jeitos e nos talentos da artista. Cada obra é, por isso, também um abraço e um gesto de amor, de partilha e cumplicidade.
Como Robert Sabatier (1923-2012), Cristina habita “um provérbio tão vasto que era preciso um universo para enchê-lo”³, é uma sonhadora de devaneios e de cosmos que recorre à vida quotidiana para expurgar inquietações e vertigens, é a autora da sua própria solidão, um ser que se abre a partir do mundo, o interior e o exterior.
De repente ele se faz sonhador do mundo. Abre-se para o mundo e o mundo se abre para ele. Nunca teremos visto bem o mundo se não tivermos sonhado aquilo que víamos. Num devaneio de solidão, que aumenta a solidão do sonhador, duas profundezas se conjugam, repercutem-se em ecos que vão da profundeza do ser do mundo a uma profundeza do ser do sonhador. O tempo já não tem ontem nem amanhã. O tempo é submergido na dupla profundeza do sonhador e do mundo.4
É, em parte, na possibilidade do sonhador do mundo, que a utopia de Cristina se cruza e se vincula à utopia de Sophia, mulher e poeta que dedicou a vida à causa da Liberdade, tendo integrado, inclusivamente, a atividade política portuguesa no período pós-PREC e tendo mantido intensa intervenção cívica sobre as coisas do Estado e o seu estado. Por outro lado, em ambas assistimos à revolução pela causa feminina. E se em Sophia ela é pela palavra, em Cristina faz-se na negação do estereótipo corpóreo, não seguindo as suas personagens as significações sociais que, por pré-conceito, atribuíamos às qualidade físicas e morais de homens e mulheres, como nos explica David Le Breton (n.1953):
As qualidades morais e físicas atribuídas ao homem ou à mulher não são inerentes a atributos corporais, mas são inerentes à significação social que lhes damos e às normas de comportamento implicadas. O feminismo através da atividade militante tornou possível a reflexão sobre certas desigualdades sociais e sobre os estereótipos de discursos e atitudes, sobre as práticas sociais que fazem da mulher, como evidencia por outro lado Goffman, um ser frequentemente em exposição diante do homem e a ele subordinado.5
Cristina Troufa faz uma afirmação da sua temática a partir do seu próprio eu, colocando o seu corpo e o seu objeto de estudo para além dos limites da disrupção. As suas mulheres, ainda que sempre Cristina, representam as sonhadoras do mundo, afetam-se a todas as tarefas, atividades e eloquências. Corrompem e provocam o olhar, não de quem vê, mas de quem sente e se incomoda com o que vê.
Como Sophia e como Nietzsche (1844-1900), que, curiosamente me acompanham desde o primeiro dia do amor aos livros e às palavras, como todos os poetas e todos os filósofos, Cristina Troufa ama a Liberdade e combate a auto-censura que a sociedade lhe impõe enquanto mulher. Obriga-nos a olhar para ela e, através dela, mirarmos o nosso instante de verdade, o que omitimos ao esconder a dor, a falha e a perda. O Dia Internacional da Mulher, cuja lembrança colamos a esta UTOPIA, é também um desafio à verdade de ser mulher, sem medo da queda e com pressa do futuro, mas ainda mais urgência do presente. É por isso que não há coincidências em UTOPIA. Há apenas as mulheres de Cristina ligadas às eternas palavras de Sophia, num espaço de galeria feito livro aberto onde cabe a organicidade animal de cada um(a) de nós. São todas as mulheres que queremos abraçar em UTOPIA. Fazê-lo com Arte e em contemplação ativista do futuro. Impossível? Apenas UTOPIA.
Helena Mendes Pereira
chief curator da zet gallery
¹NIETZSCHE – Assim falava Zaratustra. Lisboa: Guimarães Editores, 2007. Página 148.
²TAVARES, Gonçalo M. – Atlas do Corpo e da Imaginação. Alfragide: Editorial Caminho, 2013. Página 343.
³Citado em BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Página 165.
4 BACHELARD, Gaston – A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2009. Páginas 165 e 166.
5 BRETON, David Le – A Sociologia do Corpo. Petrópolis: Editora Vozes, 2010 (4ª edição). Páginas 68 e 69.