“Ínclita geração, altos Infantes” disse Luís Vaz de Camões sobre os filhos de D. João I e D. Filipa de Lencastre, cuja educação, à maneira do Renascimento dos séculos XV e XVI, privilegiou uma amplitude de saberes que começava no estudo dos clássicos, passando pela astronomia, matemática, filosofia, política, combinadas com as artes da guerra e tendo por base um sonho de futuro visto além-mar e além-fronteiras. Sobre o poeta e a sua obra muito estudou o Professor Vítor Aguiar e Silva, na sua casa que é o Instituto de Letras e Ciências Humanas (ILCH) da Universidade do Minho. Também por isso, e de olhos postos no futuro, o quisemos homenagear. Aos grandes homens devem ser legadas as grandes obras. Fomos, por isso, ambiciosos na forma deste tributo.
Estando envolvidas instituições que têm no seu corpo de valores e conduta a multidisciplinaridade de saberes, o investimento no conhecimento e na inovação, como são a Universidade do Minho e o grupo dst, e afirmando os princípios de uma economia circular (por oposição à tradicional economia linear), às artes e às humanidades fez sentido juntar as mais recentes descobertas no campo da engenharia.
Muito se tem falado sobre alterações climáticas e sobre a necessidade da adoção de políticas e práticas de sustentabilidade ambiental, alargadas a todas as áreas da ação humana. O cimento, marca da nossa urbanidade, segundo estudos recentes, é responsável por 15% do CO2 emitido para a atmosfera. Pretende-se que o ASIC, um resíduo da indústria siderúrgica – que tem vindo a ser estudado nos laboratórios do IB-S (Instituto de Ciência e Inovação para a Bio-Sustentabilidade da Universidade do Minho), com o entusiasmo do grupo dst – possa vir a ser integrado na economia não só como substituto de agregados em betões mas também como substituto do próprio cimento.
Na homenagem ao Professor Vítor Aguiar e Silva, o desafio lançado foi o de sermos ínclitos e capazes de agir em território desconhecido. É neste contexto que surge o convite ao artista plástico Raúl Ferreira (n.1975), cuja produção artística contempla a utilização de cimento e se posiciona, conceptualmente, na desconstrução dos suportes tradicionais da obra de arte através da criação de jogos de formas e cores que intervêm no espaço. O Raúl, que às balas também dá sempre o peito, atirou-se ao desafio do trabalho com o ASIC e propôs-nos uma peça esbelta e de grande envergadura, cuja estrutura nos remete para uma loggia à maneira da arquitetura clássica, em arco de volta perfeita, encerrada com um livro aberto, numa sugestão ao fac-simile d’ Os Lusíadas do Professor Vítor Aguiar e Silva.
A equipa do IB-S exaltou-se, no sentido positivo do termo: uma escultura de quase três metros de altura, um metro de profundidade, com um peso aproximado de três toneladas, sendo cerca de 650 destes kg respeitantes ao livro, o capricho do artista, que ainda lhe sugeriu página folheada ao vento – a eterna ambição do artista de querer superar a própria lei da gravidade, como já o havia sonhado José Rodrigues (1936-2016), escultor autor do Prometeu que é porta do Campus de Gualtar.
O trabalho desenvolvido, envolvendo as equipas do IB-S, do grupo dst e do ILCH, sob coordenação e inquietação permanente do nosso artista, fez-se em pouco mais de um mês, só sendo possível quebrados os muros e as diferenças, e envoltos, todos, num enorme espírito de missão. Tecnicamente, e dada a urgência na moldagem da escultura, em particular do livro de um metro de lombada, as composições desenvolvidas foram otimizadas para adquirir resistências elevadas a idades jovens. A opção pela composição de cor, maioritariamente, branca, foi do escultor para aumentar o contraste com o agregado cinza escuro do ASIC. A intenção é dar destaque ao “material do futuro” tal como ele é, no seu estado bruto e como é originalmente criado.
O livro, o requinte da nossa loggia interrompida, é esbelto e de geometria muito complexa, demasiado exigente para um betão convencional. Neste caso, foi também inviável a colocação de armaduras. Propôs-se ao escultor a utilização de um betão especial, desenvolvido também no trabalho de investigação do IB-S, nomeadamente um ECC (Engineered Cementitious Composite). Trata-se de um material reforçado com fibras e desenhado à microescala para exibir elevadíssima ductilidade (extensão de rotura igualada apenas por aços de elevada ductilidade) e capacidade de suportar elevadas deformações sem romper. Para além disso, tem capacidades autorregenerativas (self-healing) o que o torna num material bastante avançado e de comportamento complexo. Existem já algumas aplicações em casos muito especiais, tais como núcleos rígidos em betão dúctil de arranha-céus no Japão, a fim de evitar o seu colapso durante sismos muito intensos. É também usado para estruturas de proteção contra explosões, juntas de dilatação contínuas em pontes, estruturas esbeltas de betão sem armadura, etc. No caso especial desta escultura, será a primeira vez (tanto quanto se conhece) que se vai aplicar um ECC branco.
A peça mistura, assim, dois materiais de futuro: um que incorpora uma percentagem de resíduos elevada e outro de desempenho muito avançado incluindo capacidades regenerativas, numa criação artística.
“Artes, Humanidades e Engenharia” é uma imponente homenagem ao Professor Vítor Aguiar e Silva, mas é também a afirmação de uma ideia de futuro: um futuro do trabalho multidisciplinar e em rede, um futuro do cruzamento de saberes, um futuro em que o conhecimento e a inovação são fatores de crescimento económico sustentável, ambiental, social e cultural. Esta homenagem consubstancia o sonho de uma geração que se quer ínclita e sem medo do desconhecido.
Helena Mendes Pereira (chief curator da shairart) e Tiago Miranda (diretor do IB-S)