A fábula, no verdadeiro sentido da palavra, é o que merece ser dito. Durante muito tempo, na sociedade ocidental, a vida de todos os dias só pôde ter acesso aos discurso quando atravessada e transfigurada pelo fabuloso; era preciso que ela fosse retirada para fora de si própria pelo heroísmo, a façanha, as aventuras, a providência e a graça, eventualmente a perversidade; era preciso que fosse marcada por um toque de impossível. Só então se torna dizível. Aquilo que a punha fora do alcance permitia-lhe funcionar como lição e exemplo. Quanto mais a narrativa fugisse ao vulgar, mais força tinha para fascinar ou persuadir. Nesse jogo do “fabuloso-exemplar”, a indiferença face ao verdadeiro e ao falso era pois fundamental. E se acontecesse alguém tomar a iniciativa de dizer por mor dela mesma a mediocridade do real, mais não era que para provocar um efeito cómico: o simples facto de se falar disso fazia rir.¹
No enquadramento da pós-modernidade, é cada vez mais complexo o conceito de autor e de autoria. Por um lado, na dimensão da sociedade do consumo e da difusão da informação (em imagens, palavras ou por sistemas multimeios) cada um de nós é necessariamente influenciado pelo contexto, sendo inevitáveis as apropriações e os contágios. A discussão sobre a necessidade de revisão do conceito de autoria não é de hoje, podendo citar-se Michel Foucault (1926-1984) e a conferência de 1969, na Sociedade Francesa de Filosofia, O que é um autor?² em que o sociólogo discorre sobre a função do autor, gerada em finais do século XVIII, procurando refletir sobre os processos que instauram a crítica e que aludem ao homem e à sua obra. Por sua vez, as teorias de Roland Barthes (1915-1980) em A morte do autor³, de 1968, são decisivas para o surgimento das teorias da receção: “as linguagens, os discursos circulam livremente”, diz-nos. No caso mais concreto da produção artística e cultural contemporânea, no portento de um tempo de excessos e de relações desiguais entre homem e natureza e de intolerância generalizada, interessa discutir a questão do autor e da autoria, da influência e da apropriação. Alexandre Rola (n.1978) pertence à geração de artistas com apego à (anti)estética da rua e do universo cosmopolita, que constrói a sua plasticidade apropriando-se, literal ou poeticamente, das imagens que vê, caminhando enquanto olha o cenário que abandona à sua passagem, quer se tratem dos cartazes e de outros suportes de comunicação que povoam a cidades, quer estejamos concentrados nos presépios de pobreza e desgaste que, no combate à indiferença, não conseguimos ignorar. O processo de crescimento económico, de turistificação e de progresso é, em muitos países, promotor dos opostos e, ao mais opõe-se sempre o menos, ou mesmo o nada. O olhar de Alexandre Rola não é, nem podia ser conhecendo-se a sua sensibilidade, o seu interesse pela fotografia e por olhar a realidade a partir da lente, desligado deste seu (nosso) contexto. O ponto de partida é a cidade, o ponto de chegada é a construção plástica e imagética com recurso ao talento e à imaginação.
O aproveitamento de materiais provenientes do desperdício quotidiano e a apropriação de imagens provenientes da cultura de massas é uma tendência crescente dos nossos dias, que tem o seu histórico numa reinterpretação de conceitos da pop art, da art povera e dos movimentos de pendor conceptual. Discutir autoria, originalidade e ideia é, por isso, inevitável, na medida em que, não raras vezes, nas criações desta geração de artistas, nos confrontamos com uma espécie de deja vu. A mensagem que Alexandre Rola transmite nos seus trabalhos começa, assim, antes da ação da pintura. Os suportes feitos em cartão e a partir de cartazes revelam-nos uma temporalidade, causada pelos fatores da acumulação e do desgaste. O artista permite e faz uso do tempo na preparação dos seus suportes, cuja recolha aponta um interesse pela humanidade e, por sua vez, pela busca do novo por via da experimentação. A fotografia, outra das dimensões da produção artística de Alexandre Rola, é o processo através do qual ativa o revivalismo de um momento vivido unilateralmente e que se torna global pela sua incorporação num cartaz ou noutro suporte gráfico, atingindo uma intensidade, ritmo e momento que se demarcam do evidenciado na fotografia. Talvez a fotografia possa ser um alimento para o futuro e a pintura um digestivo do passado. Entre cartazes e pessoas nasce a pintura e, algures entre a pintura e o artista, estará a busca do homem.
LOOK BACK, GO AHEAD é a exposição individual de Alexandre Rola, artista plástico com um vasto currículo em que se incluem vários prémios nacionais e internacionais, dos quais se destacam “Personalidade do Ano em Artes Plásticas” (Portugal) e “Prémio Internacional de Pintura Desigual” (Espanha).
Nesta exposição, a maior do percurso do artista, a galeria shairart dst será palco da desvinculação do artista em relação aos suportes tradicionais da criação artística, sendo evidentes as muitas referências à cultura do consumo e ao desperdício, o que resulta numa inquietação criativa e numa extensa produção em que o artista combina uma dimensão política e social, mas também sensível e de referência à literatura e, sobretudo, à natureza e aos seus elementos.
Para aqueles que visitaram a anterior exposição apresentada neste espaço de Braga, notará nesta de Alexandre Rola, propostas diametralmente opostas, em que a ideia de obra de arte é colocada na dimensão da degradação da sociedade pós-moderna, sob o olhar atento de um artista notável, que transfere competência técnica para a sua robustez e ousadia matérica. Um espetro de cerca de 50 peças que incluem as das séries Terra e Home+ e várias novas criações, repletas de palavras e gestos de ordem, intenções e divagações pelo espaço urbano, que deixam a descoberto o artista experimentalista, inquieto e observador atento do seu tempo e do seu meio.
Há, no exposto, a capacidade inata para a intemporalidade e reside na esfera do observador um caráter de estagnação e continuidade em simultâneo, podendo cada um de nós ver algo de si neste outro algo que lhe é externo. O que Alexandre Rola nos propõe não é fábula nem historieta, é um confronto com o real cru de todos os dias. Disse Pablo Picasso que “No, la pintura no está hecha para decorar las habitaciones. Es un instrumento de guerra ofensivo y defensivo contra el enemigo.” Alexandre Rola combate, está na frente de batalha e cabe ao observador juntar-se, ou não, às suas causas.
Helena Mendes Pereira e Alberto Rodrigues Marques
equipa de curadoria da shairart