Conhece-la? Onde é? Qual é o seu nome?
– Não tem nome nem lugar. Repito-te a razão por que a descrevi: do número das cidades imagináveis temos de excluir aquelas cujos elementos se somam sem um fio condutor que os ligue, sem uma regra interna, uma perspectiva, um discurso. São cidades como sonhos: todo o imaginável pode ser sonhado mas também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo, ou o seu contrário, um terror.
As cidades como os sonhos são construídas de desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja secreto, as suas regras absurdas, as perspetivas enganosas, e todas as coisas escondam outra.¹

A cerca de 100 km a sul de Bagdad (Iraque) encontramos a atual cidade de Al-Hillah onde resistem as ruínas da Babilónia, palco principal da civilização Babilónica, na antiga Mesopotâmia. Babel (em hebraico) ou Bavel (em árabe) terá sido, primeiro por volta do século XVIII a.C. e, depois, no século VI a.C. a maior cidade do mundo, onde existiram alguns dos mais emblemáticos monumentos da Antiguidade, numa área de cerca de 10 km², defendidos por imponentes muralhas. Entre o século VII e VI a.C., o Antigo Testamento descreve-nos o exílio de grupos de judeus do antigo Reino de Judá para a Babilónia, lugar que instigou imagens semelhantes às irrigadas pelos rios Tigre e Eufrates, textualmente citados na descrição do paraíso. Localizadas numa região fértil e num entroncamento de importantes rotas comerciais, as cidades da Babilónia eram comercialmente e culturalmente desenvolvidas, tendo promovido uma civilização complexa, cosmopolita, poliglota, monumental e com uma aposta na educação, na ciência e na arte. O supra citado exílio de parte da elite judaica abriu, inclusive, novos horizontes aos judeus, tanto em termos de organização política como ao nível do conhecimento sobre o funcionamento da máquina estatal. Os registos escritos feitos por estes exilados tornaram-se fundamentais e a sistematização da Bíblia hebraica começa ainda na Babilónia.

Na (re)descoberta do Levante, outrora berço, em migrações do litoral para o interior, dos grandes centros urbanos para as cidades de média dimensão, preferindo os jardins aos elevadores, o espaço à localização, há uma nova geração que, instigada pelas consequências dos processos de gentrificação, turistificação e especulação imobiliária, se revê nas periferias e nos arrabaldes e que num tempo da designada “internet das coisas”, não sente a extrema necessidade da proximidade do caos urbano, substituído por filosofias de vida mais vinculadas à natureza e à presença de exercícios de comunidade e partilha que a solidão imposta pela sofreguidão das cidades, não permite. Esta será a primeira condição unificadora do grupo de artistas que protagonizam a exposição NOVAS BABILÓNIAS: seres da viagem, do mundo e das suas rotas, herdeiros e influenciados pelo caos urbano, criam na extrema vertigem dos silêncios, procurando a exatidão, o detalhe e (des)construção do pensamento em segmentos plásticos e visuais densos. Atuam numa espécie de periferias e tangentes da vanguarda, sem afirmações neoconceptuais simples e partindo antes de processos complexos de produção, que recorrem a uma plêiade de meios e de técnicas que fundem, de formal percetível e impercetível, o vídeo, a fotografia, a performance, a música, o ready made (enquanto processo e não enquanto fim), a colagem e a agregação, caminhando para contextos de observação do detalhe comportamental, laboral e cenográfico, variando entre campos urbanos abertos e fechados, planimétricos ou objetuais. Todos eles recolhem e apropriam-se de iconografias ou elementos físicos de configuração e memória urbana e/ou industrial, agregados visual e plasticamente de diferentes formas, elegendo a pintura como prática primordial e o desenho como base de criação indispensável. Antropologicamente, radicam-se na urbe e nas suas imagens e semânticas para divergirem, depois, em escolhas – metodológicas, plásticas e conceptuais – que aqui são apresentadas como roteiro a uma reflexão feita projeto de curadoria.

É verdade que, ocasionalmente, muitas culturas parecem reconhecer semelhantes equações simbólicas mas, quando é o caso, a razão parece estar na partilha de experiências que sugerem paralelismos entre os diferentes fenómenos. Essa experiência comum de modo algum nega o papel essencial da cultura na codificação dos paralelismos.
Há uns simples grupos de traços, um dos quais é a cor, e as partes do corpo, outro, que todas as culturas reconhecem. Porquanto as funções corporais são comuns ao género humano, e as cores se podem rapidamente associar aos fenómenos naturais bem conhecidos – como a noite e o dia – as diferentes culturas, quando utilizam esses traços de forma metafórica, produzem muitas vezes analogias semelhantes.²

De gerações e com percursos diferentes, a seleção destes seis artistas foi, assim, ditada na tentativa de resposta (ou amplificação da pergunta) sobre que novas Babilónias estamos nós, afinal, a construir?

Confrontamo-nos, todos os dias, com a volatilidade com que perdemos o direito aos territórios de que fomos pertença e nos quais somos identidade. O tempo e o espaço da cidade transformam-se à velocidade da luz, tendo em nós o impacto da neblina que cai sobre a nostalgia em que mergulha o nosso olhar. Sonhamos e desejamos aquele paraíso perdido, cosmopolita e bairrista, repleto mas que comunga com o silêncio que nos urge. Queremos, no fundo, o fervilhante ambiente multicultural da Babilónia de há quatro milénios, às margens do Eufrates, com os jardins suspensos da nossa imaginação e aquele sentimento, que nos é descrito por Plínio, o Velho (23-79) do vislumbre do paraíso. Hoje perdemos esse olhar do Levante que nos parece distante do ocidente que pretendemos afirmar.

Enquanto proposta expográfica, NOVAS BABILÓNIAS reúne as cenografias imaginadas, surreais e futuristas, de Acácio de Carvalho (n.1952); os ambientes desconstruídos de Gil Maia (n.1974); a minúcia, feita de desperdício industrial, das pinturas-objeto, sem pintura, de Mafalda Santos (n.1980); as referências azulejares, que tocam a pop e o dada, de Manuela Pimentel (n.1979); as palavras de ordem e a cidade em pedaços que dão forma à plasticidade violenta de Paulo Moreira (n.1968); e as mulheres feitas corpo, feitas casa e feitas tudo e nada que o desenho de Sónia Carvalho (n.1978) revela.

A recolha e agregação no suporte de marcas industriais e urbanas é um dos denominadores comuns a este grupo de criadores, todos eles entusiastas das fixações e opções humanas não convencionais, pensadores sobre o seu tempo e espaço de atuação, não apenas enquanto artistas, mas no âmbito mais alargado da cidadania ativa e da construção de alternativas ao caos dominante. Paulo Moreira e Manuela Pimental são, de formas diferentes, objetivamente sintomáticos desta tendência. No caso de Paulo Moreira é evidente o referencial da rua, da urbe nas suas composições e na seleção de elementos. Contudo, o corpo de trabalhos que integra NOVAS BABILÓNIAS é agora mais depurado, com uma maior presença do branco e dos singelos recortes de desenho, mantendo as palavras de ordem e a colagem como método. Poderíamos sugerir que a depuração é uma espécie de desejo de calma ou mesmo um apelo a uma ocupação das margens e das periferias, fazendo proliferar novos centros, novos paraísos. O fundamental na pintura de Paulo Moreira é a redefinição do espaço (urbano), do suporte, e o contraste de uma certa geometria com a profusão de conceitos. Não raras vezes, o artista arrisca em processos criativos que exploram o vídeo, a fotografia e a performance e que servem de alicerces à compreensão e indagação das suas reflexões e explosões plásticas. Em NOVAS BABILÓNIAS apresenta-nos também um exercício vídeo que parte do som associado ao funcionamento de uma máquina de lavar roupa para depois nos questionar sobre as possibilidades e impossibilidades do nosso corpo e da nossa condição humana literal, tendo como protagonista um escaravelho em luta com a lei da gravidade. Manuela Pimental, por seu turno, tem o azulejo tradicional português como referente, que recria em exercícios de acumulação de papel-matéria sobre o suporte. A recolha vem do território e dos contextos e contrapõe um método de guerrilha com uma apologia a um voltar a olhar para as raízes e para as iconografias tradicionais, recuperando identidades e significâncias clássicas. Manuela Pimental (re)liga estórias e sinais, combina encruzilhadas e derruba pré-conceitos. As obras que integram NOVAS BABILÓNIAS não são avessas ao ready made, consequente da acumulação do que encontra e lhe interessa, plástica ou simbolicamente. Manuela Pimentel reinventa a nossa relação com o azulejo como marca dos momentos históricos que cruzam a imagética das nossas cidades, devolve-nos e, ao mesmo tempo, retira-nos quando nos desafia a contemplá-la.

O trabalho de Mafalda Santos, como o de Manuela Pimentel, tem como ponto chave o detalhe e a minúcia. Não obstante, na obstinada Mafalda Santos os suportes são marcados por um jogo de tensões e forças entre linhas verticais e horizontais e pelas gradações de cor que criam efeitos perspéticos. Não raras vezes, o trabalho tem uma dimensão narrativa e de situação, como noutras, sobretudo nas da emergência do desenho, é marcado por uma afirmação de Liberdade. O desenho é, de facto, crucial em toda a produção artística de Mafalda Santos. A série de trabalhos apresentada em NOVAS BABILÓNIAS parte de uma recolha de resíduos industriais, muito em particular, restos de papel impresso em empresas gráficas, provenientes do corte e do normal ajuste que as publicações sofrem, depois de impressas. Cada lote destes resíduos contém um desenho, um padrão, uma forma que Mafalda Santos combina meticulosamente em suportes dinâmicos, que a expandem do campo mais estreito da pintura ou do desenho. O processo acontece no recato imperturbável do atelier ou não tivesse a artista no seu percurso, um constante recuo face ao caos das grandes cidades, que a levaram ao Alentejo e agora ao Alto Minho. O trabalho de Mafalda Santos carrega uma originalidade que combina a exigência do traço com a semiótica da cor que mantém na série constituída por Cadernos e Vitórias, sintomática das variações da sua linguagem e da evolução da sua, quase, caligrafia.

Óleos sobre tela de linho, imaginados e executados no mais clássico dos ambientes e itinerários do fazer, as obras de Gil Maia poderiam ser, neste contexto, os planos abertos de uma visão da urbe, com as suas variantes geométricas e orgânicas que fariam dela idílico. Gil Maia é minucioso e atento. Na verdade, uma predisposição para o detalhe e para o recurso à base do saber-fazer no campo das artes plásticas e visuais, é comum a estes seis artistas. Com fortes azuis, por vezes cores quentes, Gil Maia sabe usar a paleta para criar transferências, jogos ilusórios e contradições. Em NOVAS BABILÓNIAS, tal como acontece com Paulo Moreira, a seleção é mais depurada, menos tensa, sempre equilibrada e com laivos de uma liberdade gestual que abre a sua pintura para um possível novo caminho. Readymade Choises é a proposta de Sónia Carvalho que, pela primeira vez, expõe aguarela sobre papel. O trabalho de Sónia Carvalho parte sempre da performance, do olhar através da fotografia, por vezes do vídeo que depois se consubstancia na exploração de uma paleta RGB, numa alusão ao branco-luz consequente da fusão. Há uma dimensão espiritual indissociável do seu trabalho, através da qual se procuram fazer escolhas. O cubo, símbolo feminino mas também de uma concentricidade plural, aparece-nos aqui como paradigma das escolhas da mulher, podendo aquela mesa ser a secretária de uma executiva ou a base de ação numa cozinha. Na evolução da cor, a personagem parece levitar, afastar-se do real superlativo. De desenho puro e limpo, o trabalho de Sónia Carvalho retira-nos da subjetividade visual de Gil Maia e devolve-nos ao quotidiano e ao real intersubjetivo dos dias. Prepara-nos, de certa forma, para as cenografias de Acácio de Carvalho, artista para além do seu tempo geracional, com uma capacidade acima da média de se reinventar, e que aqui nos propõe uma seleção evolutiva de obras que nos trazem de uma figuração, em escala ampliada, de pequenos de lugares construídos, até às Absides da sua produção mais recente. Formatos generosos que ampliam o nosso horizonte da memória e do futuro e nos restituem a esperança de encontrarmos (em nós) esse tal paraíso, um porvir aberto, com possíveis infinitos.

Podemos compreender que o ser social é aquilo que foi; mas também que aquilo que uma vez foi ficou para sempre inscrito não só na história, o que é óbvio, mas também no ser social, nas coisas e nos corpos. A imagem do provir aberto, com possíveis infinitos, dissimulou que cada uma das novas opções (mesmo tratando-se das opções não-feitas do deixa-fazer) contribuiu para restringir o universo dos possíveis ou, mais exactamente, para aumentar o peso da necessidade instituída nas coisas e nos corpos, com a qual deverá contar uma política orientada para outros possíveis e, em particular, para todos aqueles que foram, a cada momento, afastados.³

Novas Babilónias erguem-se do pó / Tudo é novo e velho num vaivém de espuma / Tudo se refunde no brilho do bruma proclamam os Clã, em 1996, através do seu primeiro álbum LusoQUALQUERcoisa. Recuperada a melodia e o  pressuposto de que regressamos à tal busca e de que na ordem do dia se questionam as cidades que temos, as que queremos e as que podemos escolher para viver, esta exposição lança a pergunta: como queremos que sejam os lugares onde desejamos viver e não apenas existir?

Helena Mendes Pereira
chief curator da zet gallery

¹CALVINO, Italo – As Cidades Invisíveis. Lisboa: Editorial Teorema, 1996 (2ª Edição). Páginas 45 e 46
²LAYTON, Robert – A Antropologia da Arte. Lisboa: Edições 70, 2001. Página 154.
³BOURDIEU, Pierre – O Poder Simbólico. Lisboa: Edições 70, 2014. Página 99.

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