O artista, o espectador e o nu feminino, por Joana Lopes
A abordagem do nu é transversal ao longo da história da humanidade e da arte. O corpo feminino enquanto elemento de culto, ligação aos cosmos, à divindade, recurso sensual e erótico foi amplamente abordado ao longo de toda a história da arte ocidental, podendo mesmo considerar-se um dos temas mais explorados. As múltiplas representações do corpo feminino foram, ao longo dos séculos, metamorfoseando-se de acordo com os paradigmas estéticos, sociais e culturais vigentes nos diferentes períodos. Esta viagem pelo nu artístico feminino, caracterizada por construções e desconstruções da imagem das mulheres na sociedade, leva-nos a questionar a arte enquanto forma mediadora de alterar ou construir estereótipos acerca do papel da mulher no mundo.
O papel do artista e do espectador
Antes de avançar sobre a importância da arte como mecanismo intercetor na construção de novas visões sobre a realidade, importa refletir sobre dois pontos, primeiro, o artista e segundo, o espectador.
Relativamente ao artista, é importante sublinhar que a sua obra normalmente é fruto da forma como este capta e sente a realidade, da forma como se apropria da mesma e, intencionalmente, a recria, através dos meios e técnicas que encontra à sua disposição. A obra de arte é, muitas vezes, a manifestação humana da apropriação do sentido do mundo, do agrado ou desagrado que se sente, e é através deste processo criador que o artista transcende a visão vulgar, as contingências mundanas e que consegue perdurar no tempo e ser por isso alvo de múltiplas interpretações.
Estas múltiplas interpretações da obra de arte levam-nos ao segundo ponto, o espectador. A arte depende, quase sempre, deste elemento externo ao artista e à sua criação, este espectador interpreta sempre a obra de acordo com a sua perceção sobre a realidade. A experiência estética do espectador estará sempre dependente de fatores como a sua sensibilidade e inteligência. Relativamente à sensibilidade, podemos considerar que se trata da sua capacidade de perceção e valoração das formas. Quanto à inteligência, trata-se da capacidade de conceptualização, ou seja, a capacidade de compreender e interpretar as formas, que é sempre mobilizada por fatores cognitivos, fatores socioculturais, relacionados com os valores e padrões dominantes, e por fatores psicológicos, relacionados com as suas próprias vivências, a sua personalidade e estado de espírito durante a contemplação da obra de arte.
É nesta relação entre artista e realidade, e espectador e obra produzida, e, neste caso em particular, com a obra que expõe o nu feminino, que importa refletir.
O nu feminino ao longo dos tempos
O corpo feminino, a sua exploração a nu, como já referimos, varia de acordo com o período em que a obra é criada. Se existem épocas em que o corpo é sacralizado, elevado quase ao nível das divindades, noutros períodos encontramos o extremo oposto, o nu como objetivação da mulher, a representação do corpo feminino como meio exclusivo de prazer ou procriação, destituído de qualquer identidade.
Importa refletir como estas metamorfoses, de recriar o nu feminino e de interpretar as obras que incidem nesta temática, transformam a sociedade e os seus preconceitos.
Um exemplo que nos faz pensar sobre a arte do nu feminino, nos preconceitos e paradigmas que existem, na forma como se considera poder ou não representar e apresentar o corpo da mulher, é a performance da artista Deborah de Robertis – “Espelho de Origem” – inspirada na pintura “A origem do mundo” de Gustave Courbet, nu feminino que expõe cruamente uma vagina. A artista, que se sentou no Musee d’Orsay junto à obra em questão e mostrou a sua própria vagina, causou no público em geral uma série de opiniões. Se, para uns, se tratou de uma performance fantástica, que recriou a obra de Gustave Coubert, incluindo as reações que a mesma proporcionou na época em que foi criada, para outros, as reações passaram por choque, perturbação, pudor, encarando o ato como pornográfico, sendo que, para o próprio museu, tudo não passou de exibicionismo sexual.
Erotismo ou Pornografia?
Esta dualidade de interpretações perante a mesma performance, onde o nu estava patente, levanta outras questões. Onde acaba o erotismo e começa a pornografia? De que forma o público interpreta a mesma composição artística, variando o suporte? Neste caso, a pintura de Coubert é considerada arte mas a recreação da mesma, através do corpo da artista, foi considerada por muitos como pornografia.
Este exemplo revela como espectador e artista nem sempre estão na mesma frequência, e como a obra de arte é, e será sempre, alvo das múltiplas interpretações que variam de acordo com o sujeito que a observa.
É fundamental perceber que a criação do nu artístico traduz sempre uma visão pessoal sobre o mundo, e que a obra de arte se autonomiza do seu criador. Por essa razão será sempre alvo de múltiplas interpretações. No caso da abordagem ao tema do corpo feminino será importante, para ajudar a desconstruir preconceitos, sensibilizar o espectador para o facto de a obra exigir sempre uma leitura à luz de um contexto histórico, sociocultural, técnico e cientifico. Envolvências que afetaram profundamente as características psicológicas do artista e, consequentemente, a sua obra.
Sobre a autora:
Jo Lopes, que pinta desde que se recorda, elege como temas preferidos o erotismo, a sensualidade e o amor. A autora assume que gosta de explorar o lado emocional da vida. Conheça o trabalho da pintora aqui.