Muitas vezes falamos sobre arte, como se fosse um conceito que se derrama igualmente por todas as sociedades, da mesma forma que se apresenta a água ou o sol. Em qualquer parte do mundo, a água molha e o sol aquece. Mas a arte não é um bem terrestre, mas sim uma construção simbólica que adaptamos às nossas necessidades de significado tribal.¹
A OFICINA TROPICAL de Francisco Vidal (n. 1978) pretende ser uma recriação expográfica dos seus tempo e espaço criativos, na evidente emergência de uma aproximação, pela Arte, dos territórios que marcam, semanticamente, as suas pinturas e desenhos. Na exposição individual que tem lugar na zet gallery de 14 de março a 2 de maio de 2020, Francisco Vidal traz-nos África, de Angola a Cabo Verde, devolve-nos Lisboa e Nova Iorque e faz-nos sentir mundo, tropicalidade e paixão. Com uma plêiade de trabalhos fundamentalmente recentes, que itineram entre o suporte papel, a tela ou as composições de catanas, não esquecendo a dimensão utópico-instalativa de algumas das propostas, Francisco Vidal transporta-nos para o seu gesto livre, carregado de irreverência, jazz e espiritualidade. O atelier, na antiga Fundição de Oeiras, é um mundo de perdidos e achados, de memórias e contragolpes onde o trabalho vai acontecendo na intensa originalidade de quem sabe que não há lei universal na Arte. Não obstante as influências que podemos encontrar, em Francisco Vidal, de artistas que marcaram a cena underground americana na décadas de 1980 ou que lhe reconheçamos um vincado neoexpressionismo cuja paleta e arrojo nos remete para Jean-Michel Basquiat (1960-1988), o luso-angolano soma a tudo isto uma dimensão mundo e uma autenticidade, intencionalmente política e de estética tropical que são novas.
Ao contrário da autonomia humana, a autonomia da arte apercebe-se da diferença radical e profunda que existe entre as obras de arte. A composição de uma obra de arte difere de outra. Não existe nenhum conteúdo que todas as obras tenham em comum. As obras de arte são indivíduos radicais. Os seres humanos são indivíduos que participam de modo universal.
(…)
O importante aqui é que os seres humanos não são obras de arte. Estas últimas são muito mais radicais, individuais e originais do que alguma vez um Sapien sapiens poderá ser. É por isso que todas as tentativas de assimilar a arte à vida humana estão condenadas à afirmação direta ou indireta do mal. Pode-se argumentar que esta é uma das causas de morbilidade no final do século. É claramente um dos temas de “As Flores do Mal”, de Baudelaire. Se os humanos se transformam em obras de arte, tornam-se imorais, porque as obras de arte opõem-se ao universal. Não podem existir sob o domínio de uma lei universal.²
O que nos propõe é radical e singular. Não busca a moralidade, mas a luta e nos traços comuns do seu gesto e da sua paleta (re)descobrem-se pontos de vista, a atualidade e o que inquieta. Na efeméride da condição contemporânea da obra de Arte, Francisco Vidal é pintor e acredita na persistência do saber fazer e na liberdade do movimento que exerce sobre o pincel, num sublime captar a realidade e transfigurá-la. As séries de desenhos que integram esta exposição, ora em preto e branco, ora a cores, atuam sob a égide de uma dimensão instalativa da viagem, do ir e do voltar. São pequenas estórias que, em muitos casos, se aproximam da estética da banda desenhada e, sendo assim, bebendo na pop art e na suas permutações e permanências ao longo de décadas. Sobretudo, não há gavetas, há a Arte pela Arte e há, em oposição, o homem e o artista que procuram na pintura (e no desenho) a forma da essência, a medida da espiritualidade e o confronto com a passagem.
Existe alguma maneira mais concreta de exercer o poder do julgamento nas condições da contemporaneidade? Sugeri que pelo menos quatro temas atravessam a heterogeneidade que domina a situação atual. Hoje, milhares de artistas canalizam as suas diversas preocupações em questões sobre o tempo, o local, a mediação e o afeto. Para sermos mais precisos, poderíamos dizer que interrogam o atrito entre múltiplas temporalidades, a dualidade localização / deslocação, a saturação das mediações na sociedade do espetáculo, as fissuras internas e, sobretudo, a maneira de como estes fatores moldam o afeto e as ligações coletivas.³
Em tudo, um questionamento e uma repulsa da fugacidade das coisas e da futilidade dos dias. Procura-se, pela pintura e pelo desenho, a sensação da luz interior e, ao mesmo tempo, a que é capaz de mudar o mundo e ser feliz nos seus detalhes e nas suas tramas. Francisco Vidal não é de hoje e o seu nome soa por cá e por lá. Licenciado em Artes Plásticas pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão de Arte & Design das Caldas da Rainha e com o Master em Fine Arts pela School of Visual Arts da Columbia University, em Nova Iorque, é um nome incontornável da pintura, do desenho e do gesto que se faz cor, se faz África e se faz magia. Com um percurso iniciado no novo milénio, as obras deste artista integram prestigiadas coleções nacionais e internacionais, podendo destacar-se a da Fundação EDP, Fundação Calouste Gulbenkian ou a Coleção Cachola, entre tantas outras. Trazemo-lo agora até Braga com uma exposição de cerca de uma centena de obras que nos inundarão de cor e mensagem, numa linguagem que integra a figuração e a associação livre de elementos e cores, quase à dimensão surrealista do Amor Louco de André Breton (1896-1966):
Nunca, repito, nunca o magnetismo terrestre, cuja análise nos leva a situar um dos pólos magnéticos no espírito do homem e o outro no seio da natureza, ficou mais implacavelmente posto a nu. A certeza de que, seja como for, esse magnetismo existe permite-nos, até certo ponto, iludir a questão de saber se serão pólos do mesmo nome ou de nomes contrários.4
A pintura de Francisco Vidal tem força e é verdade, tem vontade e rebeldia, é magnética e imoral, porque para lá do estritamente humano (voltando a Markus). Não há dogmas, não há regras ou repetições. Mas há a perseguição da observação do mundo que se quer contar, que se quer afirmar e ironizar. A obra de Francisco Vidal tem os seus lugares e as suas viagens, as suas origens e o seu caminho, é profundamente cosmopolita, vanguardista e, ao mesmo tempo, artesanal: tudo provém do gesto, do seu automatismo e da sua resistência à máquina. No encontro com a memória da Fundição de Oeiras, com atividade extinta em finais da década de 1980, desenvolve-se uma oficina e nela, através da metadisciplina que une o pensamento à prática plástica, uma produção compulsiva, mas calma. Há jazz a sair das colunas e palavras de ordem a chegar ao suporte.
Procura homens com uma cultura mais bela? Nesse caso, também terá de admitir, quando se procuram paisagens belas, algumas vistas e perspetivas são limitadas. Certamente também existem homens panorâmicos, que realmente são, como paisagens panorâmicas, sóbrias e impressionantes: mas belas, não.5
Francisco Vidal não é panorâmico. Não. É de dentro. Vai ao dentro das coisas, retira a essência de tudo em gestos simples que depois cobre de motivos e cor, respeitando a imanência dos suportes e as suas peculiaridades. Também anda por lá o ready made e as apropriações do que é do quotidiano e que passa a integrar o objeto artístico. A escolha das obras que integram OFICINA TROPICAL também pretendeu evidenciar a multiplicidade de possibilidades que o artista explora, sobretudo ao nível do suporte. OFICINA TROPICAL é, assim, o princípio do sonho comum (do artista e do nosso) de uma crença profunda numa arte que é peculiar mas universal, que não tem fronteiras nem raças, que é ou não é. OFICINA TROPICAL, a partir do atelier em Oeiras, é a pintura e o desenho de Francisco Vidal nas profundezas do nosso cubo branco feito galeria, que se cobre do belo, que é verdade e que acredita no bem. Francisco Vidal é da nossa tribo dos utópicos e é essa utopia tribal, tropical e oficinal que afirmamos agora, aos gritos, em pujança e sem perder fulgor.
Helena Mendes Pereira
curadora da zet gallery
1 ROMÁN, Juan Carlos – Los 100 problemas del arte contemporáneo. Murcia: CENDEAC, 2016. Páginas 83 e 84.
² GABRIEL, Markus – El Poder del Arte. Santiago do Chile: Editorial Roneo, 2019. Páginas 63 e 64.
³ SMITH, Terry –¿Qué es el arte contemporâneo? Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2012. Página 279.
4 BRETON, André – O Amor Louco. Lisboa: Antígona, 2019. Página 170.
5 NIETZSCHE, Friedrich – Ilusión y verdade del arte. Madrid: Casimiro libros, 2013. Página 47.