Permitir-me-á o leitor a derivação linguística e a apropriação de uma tendência plástica neofuturista de usar a palavra como imagem, na ponte poética com a mensagem política desta exposição, mais uma, na galeria shairart dst (Braga), que se pretende como ponto de partida, não tanto para juízos de crítica de arte, mas para uma reflexão sobre o contemporâneo, sobre o tempo e o território global que é o nosso.
Politicamente, o termo território define-se como o espaço físico sobre o qual um Estado exerce o seu poder soberano, ou seja, é o âmbito de validade da ordem jurídica estatal. De acordo com as teorias gerais de Estado, diplomacia, relações internacionais e nacionalidade, o território é uma das condições para a existência e reconhecimento de um país (sendo os outros dois a nação e o Estado). Por isso, existem determinados casos de entidades soberanas que não são consideradas países, mas Estados sem território (a Autoridade Nacional Palestina e a Ordem Soberana dos Cavaleiros de Malta, por exemplo) ou nações sem território (como são exemplo os ciganos). A delimitação territorial dos Estados modernos foi consequente dos conflitos que marcaram toda a Idade Média. O conceito de território é, portanto, de natureza ocidental e não contempla as factualidades e fatalidades acidentais.
Recentemente, Donald Trump desativou a paz entre Israelitas e Palestinianos, reacendendo as diferenças entre o Estado de Israel e a Autoridade Nacional Palestiniana, um Estado sem território. Continuando para levante, desde 2013, o autoproclamado Estado Islâmico transformou a Guerra Civil na Síria num contexto de absoluto terror que culminou na maior crise de refugiados de que há memória desde a II Guerra Mundial. Cidadãos sem terra e sem teto, rejeitados aqui e ali, gente como nós. A Europa, nas suas grandes cidades e capitais, como na sua História, é território feito de migrações, de aculturações e de integrações. O mesmo se pode dizer dos EUA, cuja génese e desenvolvimento partiu de grandes fluxos de migrantes europeus anglo-saxónicos e escandinavos, mas também, como terra de Liberdade e sonhos, sempre acolheu as gentes vindas de todas as partes do mundo, nomeadamente da América Latina. Donald Trump encabeça agora a missão de distinguir entre americanos de primeira e americanos da segunda (como existiam no Portugal do Estado Novo, os portugueses de primeira e os portugueses de segunda, referindo-me aos nativos das ex-colónias, denominação que aliás estava explícita nos bilhetes de identidade da época) e pretendendo, não apenas restringir o acesso à cidadania americana, como promover um movimento de retornados, nunca antes visto, e que ascenderá aos milhões de casos e a um flagelo social sem precedentes. Quem migra, na generalidade dos casos, fá-lo na busca da oportunidade de uma vida melhor. Negar a opção é atirar a matar pelas costas, à traição. Do ponto de vista geopolítico, mas também simbólico, a questão do território, havendo tantos outros exemplos passíveis de redação, é central no contemporâneo, verificando-se um retrocesso em matéria de respeito pelos Direitos Humanos, a grande conquista do pós-guerra.
BE A PHOTOGRAPHER surge, por um lado, da necessidade de ampliação de expressões artísticas destacadas curatorialmente e, por outro, do desafio da integração na agenda da candidatura de Braga como Cidade Criativa da UNESCO na área das Media Arts, que se veio a verificar como aprovada. A nomeada é um call to action, que se cola no verbo ao slogan da shairart, e que persegue o princípio de contacto democrático com o objeto artístico, sob o ponto de vista de criação e de consumo. Na casa de partida, espírito aberto e ausência de tema de convergência conceptual. Era a fotografia que nos interessava.
O T-E-R-R-I-T-Ó-R-I-O foi consequência do confronto ocasional com a série Europa Século XXI, da autoria do espanhol Gabriel Tizón (n.1973), e que se apresenta, na relação do conceito com a expografia e com as características arquitetónicas da galeria shairart dst, como o corpo central de uma seleção de artistas e obras de arte que pretende, em arranque de novo ano, colocar-nos na pele do outro. E se fosse comigo? E se fosse com os meus? O grego Dimitri Mellos (n.1970), radicado desde há vários anos em Nova Iorque, traz-nos o tema, na beleza da diversidade, a partir, precisamente dos EUA. André Castanho Correia (n.1988), por sua vez, manifesta especial interesse por registar paisagens (urbanas ou outras) em estados de transição e/ou de abandono. Em o outro espaço procura refletir sobre a configuração espacial e estado de conservação de diferentes áreas de habitação social, ora de tutela do Estado, ora autoconstruídas. Inclui três contextos locais (Enguardas, Santa Tecla e Picoto, em Braga), um nacional (Bairro 6 de Maio, Amadora) e um internacional (Robin Hood Gardens, Londres). Há nações sem território nos quadros imagéticos de André Castanho Correia. Não conseguimos, até aqui, ficar indiferentes ao poder da fotografia.
Aquilo que a Fotografia reproduz até ao infinito só aconteceu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente. Nela, o acontecimento nunca se transforma noutra coisa: ela remete sempre o corpus de que necessito para o corpo que vejo: ela é o Particular absoluto, a Contingência necessária soberana, impenetrável e quase animal, o Tal (tal foto e não a Foto), em suma, a Tyche, a Ocasião, o Encontro, o Real, na sua infatigável expressão.¹, escreveu Roland Barthes (1915-1980).
A fotografia, enquanto inovação de caráter científico, coincide com os factos próprios da Revolução Industrial e é em 1826 que o francês Nicéphore Niépce (1765-1833) realiza o que se convencionou como a primeira fotografia: uma natureza morta. Algum tempo mais tarde, repete a experiência, fotografando uma paisagem.² A história da fotografia é, de resto, a de uma expressão, que a dada altura se constitui como artística, que se compõe de géneros herdados da pintura: natureza morta, paisagem, retrato, nu. A cumplicidade entre pintores (ou, se quisermos, em campo mais alargado, artistas plásticos e fotógrafos) manteve-se ao longo do século XIX e a primeira exposição independente dos ditos impressionistas inaugurará a 15 de abril de 1874 no estúdio do fotógrafo Félix Nadar (1820-1910), na Boulevard des Capucines, no centro das Grands Boulevards, em ponto de encontro de referência da elite intelectual parisiense.
A apropriação da fotografia como Arte é gradual e será em Nova Iorque, no pós II Guerra Mundial, sob direção de Edward Stein (1879-1973), pintor, fotógrafo e curador, que se desenvolveu de forma mais significativa o departamento de fotografia no MoMA. Será também na capital cultural norte-americana que veremos surgir a street photography que, inversamente, irá influenciar pintores como, por exemplo, Edward Hopper (1882-1967).
A rua é como a cena de um teatro que fascina o espectador-fotógrafo; nela se representam, de dia como de noite, toda a espécie de dramas, tristes ou alegres, dramas em que se misturam personagens de toda a espécie. (…) A rua torna-se rapidamente, na história da fotografia, um espaço privilegiado, que se presta às mais diversas composições. Como se a vida moderna, tal e qual se revela na cidade, não tivesse encontrado na pintura uma tradução apropriada.³
A proposta de Ricardo Reis (n.1981) combina o trabalho de observação da rua, na sua paleta de preto e branco, com as potencialidades de edição da imagem que o século XXI permite, apresentando-nos quadros de ilusão, fantasia e sonho, não deixando de nos reportar para o real de memória comum. A proposta de Miguel De (n.1992) é de uma viagem a territórios interiores, através de uma relação entre o corpo humano masculino, do ponto de vista formal e compositivo, e as paisagens que fazem a biografia do autor. O corpo enquanto corpo. A fotografia na possibilidade de comunicação da mimesis do olhar.
limamil (n.1973) devolve-nos ao conceito e ao call to action, numa proposta que se enquadra nas vanguardas dos anos 60 e 70 do século XX, de desafio à participação dos públicos. Para além da contemplação a que a obra de arte nos induz, somos chamados a concluir o processo criativo, interagindo com o objeto imaginado pelo autor. limamil não se limita a usar a máquina para a produção de imagens, explorando as possibilidades técnicas dos aparelhos fotográficos e seus acessórios, integrando-os em construções plásticas tridimensionais.
BE A PHOTOGRAPHER, mais do que uma exposição coletiva internacional de fotografia, é uma ação pública e cívica. Um alerta. Deambula entre as possibilidades da fotografia enquanto expressão artística e o seu potencial documental sobre os nossos dias. Neste segundo domínio, a seleção é dura e objetiva. Não podemos ficar indiferentes.
Helena Mendes Pereira
chief curator da shairart
co-curadora de BE A PHOTOGRAPHER
¹ BARTHES, Roland – A câmara clara. Nota sobre a fotografia. Lisboa: Edições 70, 2008. Página 12
² BAURET, Gabriel – A Fotografia. História, Estilos, Tendências, Aplicações. Lisboa: Edições 70, 2006. Página 18.
³ BAURET, Gabriel – A Fotografia. História, Estilos, Tendências, Aplicações. Lisboa: Edições 70, 2006. Página 29.