BARRO AO LUAR
O Péssimo aparece no meu atelier com voz de quem desperta a manhã e as mãos de experiência. Na mala de couro traz a bata, riscadores e alguns materiais inesperados, curiosidades, que nos podem auxiliar. Conchas, azulejos, moldes em gesso, livros, todos foram instrumentos. Nunca fui muito matutina, mas o barro e o seu ânimo energizaram-me.
No princípio, o estudo.
Consultaram-se livros e recolheram-se imagens nas quais identificámos elementos iconográficos. O papel foi-se dispondo ao longo da parede, e entre impressos e desenhos elevou-se a derradeira maquete.
Em visitas à obra da igreja deixamo-nos inebriar pela solenidade austera da pedra, pelos vermelhos, ocres, pelo laranja ferro que somou contemporaneidade ao projeto. Aqueles andaimes sustiveram anos de orações, cânticos e por entre eles passámos guiados pelo Tino, pelo Sr. Luís e pelo Padre António, que nos obsequiou com preciosos detalhes históricos da sua paróquia.
Uma vara de madeira serviu de régua. O Péssimo ensina-me constantemente a importância dos materiais, e das suas múltiplas utilidades.
De regresso ao atelier e com o término da fase de pesquisa, estendemos, então, a pasta cerâmica e batizamo-la de natureza. A parte mais bonita aconteceu, para mim, quando me apercebi que o que nos rodeava se tornou cenário de inspiração. O chilrear dos pássaros, a frescura rio, o barro repousado ao luar por noites a fio. Uniu-nos a “fé” na organicidade da vida, e com essa fé moldámos a argila e esculpimos o nosso “Baptismo”. A obra foi pigmentada com tonalidades de terracota, crua, despojada de vidro. Idealizámo-la assim para se fundir com pia octagonal do século XIII, e também com a parede de pedra, seu destino final. Escavámos e numerámos os azulejos que concebemos. Na fornada, um é a cama do outro, e, prosseguimos, com cuidado, este exercício de economia do espaço, que é sempre um processo antagónico, ao que a cerâmica representa para nós, expansão.
“Benze-te, filha!”- Disse-me o Péssimo quando fechamos a porta do forno. “Vamos rezar para que nada se parta!”. Eu imitei-lhe os movimentos, abri a chaminé, e deixámos o barro a cozer, “muito, muito lento!”, como me pediu, aquecido pelas memórias luminosas dos dias de trabalho. E nada se partiu. As moléculas dilataram-se perfeitamente, uma a uma e assim ficamos gratos, eternizados, nas paredes de uma igreja que também me batizou.
Bárbara Teixeira