“aura_in visibilidade do feminino”

Por Helena Mendes Pereira

Fernanda Fragateiro (PT, 1962) reúne, nesta exposição, obras recentes e inéditas que evocam artistas e arquitetas que, pela condição de serem mulheres, não conseguiram inscrever o seu nome da História. Nas palavras da artista:

“AURA é o título de um livro de Carlos Fuentes[1], publicado em 1962, o ano do meu nascimento e conta a história de uma velha mulher que convoca o passado através do fazer aparecer uma outra mulher, muito mais jovem, Aura. As duas mulheres são uma única. O livro é sobre o desejo de aparecer e de permanecer.

Aura é assim uma espécie de fantasma e de voz que está presente na ausência. A palavra Aura é também sopro; emanação; atmosfera; celebridade. Aura é também nome de mulher. As artistas que aparecem no meu trabalho têm uma aura, existe um rumor à volta delas pelas histórias que as envolvem, pelo desaparecimento a que foram sujeitas.”

Numa entrevista a Maura Reilly (EUA, 1950) de 2015, Linda Nochlin (EUA, 1931-2017) afirmou que “No Ocidente, a grandeza foi definida desde a antiguidade como branca, ocidental, privilegiada e sobretudo, masculina.” Mas a constatação de que os cânones da História da Arte no Ocidente são problemáticos não é nova. No seu ensaio de 1971, Why Have There Been No Great Women Artists?[2], a mesma Linda Nochlin alertou as mulheres (investigadores, historiadoras) que tentam nomear Michelangelos ou Picassos femininos:

Não há equivalentes femininos para Rembrandt, Delacroix ou Cézanne, Picasso ou Matisse. Tal como não há equivalentes negros americanos para o mesmo. O problema é sistémico: não está nas nossas hormonas, se formos mulheres, ou na cor da nossa pele, se formos pessoas de cor – mas nas nossas instituições e na nossa educação. A questão da igualdade centra-se na própria natureza das estruturas institucionais, no patriarcado e na prerrogativa branca e masculina que é assumida como “natural”. É precisamente esta fortaleza ideológica sobre as mulheres e as pessoas não brancas que as tem impedido de ter sucesso historicamente.

Maura Reilly é diretora do Zimmerli Art Museum da Rutgers University. E tem dedicado toda a sua carreira, como autora e curadora, a artistas sub-representados, especialmente mulheres. No livro “Curatorial Activism, towards an ethics of curating”[3] expõe o seguinte:

As estatísticas demonstram que a luta pela igualdade de género e raça no mundo da arte está longe de concluída. Apesar de décadas de reflexão e ativismo pós-colonial, feminista, antirracista e queer, o mundo da arte continua a excluir os “Outros” artistas – aqueles que são mulheres, de cor e da comunidade LGBTQ[4]. A discriminação contra estes artistas invade todos os aspetos do mundo da arte, desde a representação em galerias, diferenças de preços em leilões e cobertura dos media até à inclusão em coleções permanentes e programas de exposições individuais.

(…) como podemos levar as pessoas no mundo da arte a pensar sobre género, raça e sexualidade, a compreender que estas são preocupações constantes que exigem ação? como podemos todos contribuir para garantir que o mundo da arte se torne mais inclusivo?

Vários curadores de todo o mundo estão a abordar, ou abordaram, esta questão da discriminação. (…)

Estes curadores – e outros como eles, interessados nas injustiças do mundo da arte – têm sido curadores de tudo, desde bienais e retrospetivas a exposições temáticas de grande escala, centrando-se tanto no material histórico como no contemporâneo. Alguns abordaram o cânone histórico, ao inserir artistas em narrativas que até então tinham sido omitidas devido ao seu sexo e/ou sexualidade. Outros organizaram grandes exposições monográficas de artistas que foram historicamente ignorados, enquanto outros ainda fizeram a curadoria de exposições temáticas de arte moderna e contemporânea que abrangem um leque mais vasto de obras expostas, alargando assim o cânone histórico e/ou o discurso da arte contemporânea em geral.

 

As mulheres ainda estão longe de ser o “futuro do homem”, para usar a célebre expressão do poeta Louis Aragon (FR, 1897-1982). Ainda não ocupamos, tão pouco, o lugar que nos é devido na reconstituição, na reescrita no passado da Humanidade[5]. A solução para este défice informacional de sexo e de género é, por isso, clara: temos de reduzir o défice de representação feminina.

Quando há mulheres envolvidas nas tomadas de decisão, na investigação, na produção de conhecimento, as mulheres não são esquecidas. As vidas e as perspetivas das mulheres saem da sombra. Isto beneficia as mulheres em toda a parte e, como mostra a história de Taimina, a professora de matemática que gostava de croché, muitas vezes beneficia a humanidade por inteiro. E por isso, voltando ao “enigma da feminilidade” de Freud, afinal a resposta esteve sempre à nossa frente o tempo todo. Tudo o que as “pessoas” precisavam de fazer era perguntar às mulheres.[6]

Intencionalmente, a obra de Fernanda Fragateiro procura esta reparação, reescrita ou reconstituição de uma História da Arte que devolve o lugar às mulheres, sendo a artista uma investigadora, uma devoradora de arquivos que sustentem esta urgência de justiça representacional de género. E este é sempre o ponto de partida: a estória que se quer contar, para que a História seja mais justa e próxima do real. Nestes seus mergulhos às fontes de informação, Fragateiro regressa com o contexto de influência destas autoras, cujos contributos não reproduz mimeticamente, mas antes lê, permite que lhe nutram as formas e, com a subtileza de quem escuta os detalhes, a artista produz um corpo de objetos com referenciais na arquitetura e no design, quase topografias da paisagem, registos geodésicos dos lugares como se a forma minimal e bela não conseguisse ocultar a presença humana e, sobretudo, a ausência da mulher inscrita.

A singularidade da obra de Fernanda Fragateiro está, precisamente, nesse caminho entre a estória, o arquivo e a forma, nesse processo de síntese de uma memória por escrever, de uma mulher por inscrever. O desenho das cidades, dos territórios, é a inscrição da Humanidade e, talvez por isso, as matérias usadas tenham essa pluralidade, essa dispersão que encontramos à nossa volta. Têxtil, metal, betão e outras argamassas da indústria, por vezes a própria fotografia e, sempre, a semiótica (e mesmo iconografia) própria dos títulos dos livros, quando não são os volumes de página que ditam o que se quer. Possibilidades ligadas pela mensagem – da estória ao encontro com o poético-filosófico que é quotidiano – , pela paleta ténue, profundamente da natureza mas por vezes pop e pela elegância e do desenho, porque o desenho é o pensamento e a luta é o motor.

Agnes Martin (Canadá, 1912-2004), artista; Alison Smithson (UK, 1928-1993), arquiteta; Anni Albers (Alemanha, 1899-1994), artista; Charlotte Perriand (FR, 1903-1999), arquiteta e designer; Clara Porset (Cuba, 1895-1981), designer; Dara Birnbaum (EUA, 1946), artista; Denise Scott Brown (Zâmbia, 1931), arquiteta; Eileen Gray (Irlanda, 1878-1976), arquiteta e designer; Judith Shea (EUA, 1948), artista Lilly Reich (Alemanha, 1885-1947), arquiteta e designer; Lina Bo Bardi (IT, 1914-1992), arquiteta; Lotte Stam-Beese (Polónia, 1903-1988), arquiteta; Otti Berger (Croácia, 1898-1944), designer; ou Ray Eames (EUA, 1912-1988), artista.

Com enfoque no modernismo, estas são apenas algumas das autoras, mulheres, cujas obras e estórias de vida movem e inspiram Fernanda Fragateiro que encontra nelas o fio condutor das suas próprias margens, das suas tangentes, ou seja, de uma produção artística que se desenvolvem, ao longo de quase 40 anos com inegáveis pontos de contacto com a arquitetura, com o design e, sobretudo, com a paisagem e a palavra. Talvez a condição da sua própria dificuldade de visibilidade inicial, não obstante uma inegável consistência de produção artística, que começa de forma precoce durante a frequência da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa.

Fernanda Fragateiro era já uma ativista enquanto estudante, deixando-se inundar pelo espírito revolucionário e transformador do 25 de abril de 1974 e as questões da igualdade e equidade de género sempre estruturaram as suas ações e lutas. Organizou exposições só com outras artistas mulheres, recusando o primado do patriarcado e procurando construir um espaço que fosse seu. O caminho leva-a a espaços alternativos de exposição, ao espaço público e a uma inevitável relação com diferentes contextos e comunidades. Na profusão, a artista, autora, mulher, aprende os códices do sistema e procura contrariá-lo, ligar-se, inscrever-se sem deixar o que a distingue, sem cair em fórmulas.

Fernanda Fragateiro pensa os espaços de exposição, os contextos de apresentação, observa o tempo, desenha à medida. A sua obra não tem inscrição em estilos, numa tecnologia apenas, mas a artista inscreve-se, já se inscreveu. O percurso internacional, o seu reconhecimento unânime fala por si e, portanto, dispensa apresentações, mesmo para os mais teimosos, fiéis ao patriarcado. As suas linhas, cruzamentos, encontros, texturas, cores, referências, homenagens, são a sua linguagem singular, as suas narrativas dos dias e, sobretudo, dos tempos modernos em que nos construímos civilização.

Faço uma leitura dos catálogos de outras exposições da artista, com outros textos e palavras que se disseram sobre ela e sobre a sua obra. Processo, matéria, materiais, laboratório, forma, arquivo, construção, poesia, autores, arquitetos. Sobretudo autoras, arquitetas. Faço uma passagem pelos títulos das obras que integram esta exposição: paisagem, desaparecimento, ensaio, homenagem, diferença, repetição, esquecimento, estudo, arquitetura e, claro, aura. Essa tal aura ou Aura que é a imagem nítida gravada no pano. Sinto a exposição, não como uma retrospetiva ou antologia, mas como uma síntese expandida de quem é Fernanda Fragateiro, do que são os seus 60 anos de idade e quase 40 de produção sem pausas. E, nesta síntese, expandida (porque não) há a causa maior do feminismo, de ser mulher e de saber que não pode não contribuir para que a História seja revista, para que seja produzido novo discurso, para que seja exigida igualdade absoluta.

Cabe-vos, portanto, a vós, operários, que sois as vítimas da desigualdade e da injustiça, cabe-vos a vós estabelecer por fim sobre a terra o regime de justiça e de igualdade absoluta entre a mulher e o homem.

Flora Tristan (França, 1803-1844), União Operária, 1843[7]

[1] Carlos Fuentes nasceu no Panamá em 1928. Filho de diplomatas mexicanos passou sua infância em diversas cidades do continente americano, tais como Montevideo, Rio de Janeiro, Washington D.C., Santiago de Chile, Quito ou Buenos Aires. Seguiu também a via diplomática, mas fez carreira como escritor de romances, novelas ou ensaios. Morreu no México em 2012.

[2] https://www.artnews.com/art-news/retrospective/why-have-there-been-no-great-women-artists-4201/ em 17 de maio de 2023.

[3] REILLY, Maura – Curatorial Activism, towards an ethics of curating. London: Thames & Hudson, 2018. Página 17 a

[4] A sigla, em 2023, atualizou-se para LGBTQIA+.

[5] SAND, Shlomo – Breve História Mundial da Esquerda (2022). Lisboa: Livros Zigurate, 2023. Página 225.

[6] PEREZ, Carolina Criado – Mulheres Invisíveis: Como os Dados Configuram o Mundo Feito para os Homens (2019). Lisboa: Relógio Louis Aragon D’Água Editores, 2020. Páginas 333 e 334.

[7] Citado em SAND, Shlomo – Breve História Mundial da Esquerda (2022). Lisboa: Livros Zigurate, 2023. Página 212.

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