O filme “Paula Rego, Histórias e Segredos“, realizado pelo filho Nick Willing, é um documento fundamental, não só para o entendimento da obra de um dos maiores nomes da Arte Contemporânea, mas sobretudo como o exemplo daquilo que diferencia um Artista de um artista, ou seja, que diferencia a intemporalidade e o legado, de uma mera passagem pelo mundo da arte, ou por uma ou outra “aldeia da arte”, na expressão de Paul Klein (n.1946).

A primeira dimensão que me parece relevante na obra de Paula Rego (n.1935) é a afirmação de uma reflexão de Baudelaire (1821-1867), em “O pintor da vida moderna“, comum a outros artistas, da importância do temperamento do artista para a sua produção e processo criativo. Ao tentar considerar o temperamento como elemento de leitura da pintura, neste caso, o crítico traz à luz elementos imanentes de uma arte que não se encontra mais regida por leis externas, revelando, desta forma, o seu caráter autónomo em relação a outras esferas. A obra de Paula Rego é uma incrível verdade interior e o que este filme nos revela, ainda por cima da autoria do filho (o que lhe confere um índice de intimidade capaz de colocar o espetador dentro da cena), é uma artista de uma enorme sensibilidade, humildade, permanentemente insegura, com dúvidas sobre si e sobre o seu trabalho, conhecedora da sua condição de ser humano falível e pecador. O ato de Nick Willing, ao revelar assim a sua mãe, diz-nos, por outro lado, da enorme consciência da responsabilidade que tem em perpetuar o legado da sua mãe, deixando para o futuro ferramentas que permitam um entendimento simples, ainda que complexo porque humano, da sua produção artística.

A segunda dimensão que fica clara com este testemunho é a da importância do trabalho: Paula Rego até nasceu numa família de classe média/média alta que lhe permitiu, muito cedo, que fizesse os seus estudos artísticos em Londres, nos anos 1950, ainda antes da Gulbenkian existir e atribuir bolsas a artistas portugueses para que pudessem estudar em Paris ou Londres. Paula Rego conheceu Victor Willing (1928-1988) ainda nos tempos da Slade e esse encontro ter-lhe-á proporcionado, além de bons conselhos e incentivos para que não parasse de pintar, contactos no meio artístico. Sem dúvida que há aqui duas condições que, à partida, favorecem a artista em detrimento de outros artistas da sua geração. Mas o que nós percebemos neste filme é que Paula Rego trabalhou muito, sempre, com enorme resiliência e inquietação, ao mesmo tempo. Não parou de pintar mesmo nos períodos de grandes dificuldades financeiras ou emocionais. Não cedeu aos problemas. Foi uma resistente, sempre de pincel em riste nas fileiras da revolução. Produziu mais do que outros do seu tempo, consciente, a dada altura, de que aquele não era o caminho, não parou. Ela é o seu trabalho e o seu trabalho é ela. E foi sempre o trabalho que a salvou, de tudo. Inclusive de si própria.

Em terceiro lugar, este é um documento que expõe e clarifica o seu método de trabalho, que nos transporta até ao seu atelier. Não há dúvidas sobre como tudo surge, desde a história ao cenário construído, quase sempre com modelos vivos, culminando na obra em que a artista inclui reflexos das suas próprias memórias e segredos. É quase um método à maneira Barroca, como se Paula Rego recuperasse o espírito do atelier de Rembrandt (1606-1669) e o fundisse com a insurreição de Caravaggio (1571-1610), mas ao estilo de uma mulher portuguesa e britânica contemporânea, mãe, esposa, amante, livre.

Por fim, o filme leva-nos numa importante viagem sobre o artista e o seu contexto. Dá-nos uma leitura do Portugal de Salazar (com resquícios comportamentais até um passado bem recente), reflete sobre o papel da mulher, mostra-nos o ambiente londrino durante todo este período e revela-nos o poder da arte e dos artistas como criadores de opiniões, ou seja, como atores políticos.

Mesmo aqueles que, à partida, não gostem da obra de Paula Rego, depois deste filme passam a respeitá-la. É uma pintora tremenda, uma mulher de enorme ousadia e coragem. Paula Rego já tem o seu panteão, o seu nome em todos os aeroportos, praças e avenidas. Está lá mesmo que não o tenham escrito. Mais do que uma artista portuguesa, é um nome maior da cultura contemporânea.

Helena Mendes Pereira

chief curator da shairart

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