A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS

João Dias

por Helena Mendes Pereira

 

Um conjunto de referências cruzadas trazem-me uma coexistência de conceitos (talvez) indissociáveis da obra de João Dias (n.1983): ousadia, intimidade, expansão e escavação. Recordo John Berger (1926-2017) e a revolução de “Modos de Ver”de 1972: um conjunto de sete ensaios teóricos, com eco numa série homónima na BBC que se revelou um fenómeno de popularidade junto dos públicos pela forma como democratizava as possibilidades de apreensão da obra de arte. Berger acreditava que o olhar não é apenas fisiológico, mas antes cultural. As imagens constroem-se para serem olhadas e esse modo de olhar determina o nosso modo de compreender. Ou seja, de acordo com o crítico de arte inglês, os modos como percebemos e reagimos perante as imagens variam segundo as nossas experiências e o nosso contexto. Uma mesma imagem pode, assim, proporcionar diferentes perspetivas e diversos significados. Não há um olhar único e frontal, mas um olhar múltiplo e sincopado2. Berger induz estórias sobre os objetos artísticos, contextualiza-os e, no arranque da década de 1970, o que propõe alinha-se com a urgência de literacia que se discute e com as práticas emancipatórias, na relação da obra de arte com o espetador, que se desenham. As referências a João Dias, artista licenciado em Artes Plásticas – Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa (2006), tinham-me chegado por linhas travessas no âmbito da preparação de uma visita exploratória a Viseu, que tinha como objetivo contactar com a sua classe criativa. E, nesse dia, a descoberta do seu atelier reservou-se como tempo de crepúsculo. Há algum tempo, há muito, que os meus olhos não pousavam sobre um corpo de trabalho e um espaço processual tão íntimo e, ao mesmo tempo, tão organicamente próximo dos processos industriais que tanto fazem as minhas preferências no quadro da produção.

The Velvet Underground & Nico de 1967, com capa de Andy Warhol (1928-1987), é uma daquelas epifanias que fazem a síntese de uma geração. As décadas de 1960 e 70 são um tempo especial para as práticas artísticas em que se questionam os limites da arte numa confluência de tendências, movimentos, autores e até geografias. Warhol e outros nomes da pop art, além do elogio crítico à sociedade do consumo e da idolatria a um conjunto de personalidades da cultura de massas, introduzem os processos serigráficos e de reprodução da imagem das obras de arte no sistema, conseguindo ainda criar uma nova possibilidade de paleta que provoca um corte a direito com a cor mimética. A cor, a partir da pop art, entra no domínio da imaginação e é símbolo de uma contracultura que se funda numa espécie de revolução pelo amor e pela liberdade. Arthur Danto (1924-2013) foi, talvez, o primeiro filósofo e pensador sobre arte do nosso tempo que me fez despertar para a magia da pop art. Recordei, depois de o ler, uma exposição que tinha visto em 2010 no The Albertina Museum, em Viena de Áus- tria – “Cars by Andy Warhol” – que recuperava uma série para a Mercedes Benz, a marca automóvel símbolo de uma geração e que Janis Joplin (1943-1970) eternizou numa singela e irónica canção: “Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz?”. Da exposição, de Viena, recordo-me de corresponder a uma reabertura do museu e de, pela primeira vez, me ter apaixonado pelo chamado “betão à vista” e pela relação que estabelecia com a vibração pictórica das obras de Warhol. O automóvel e o cimento como símbolos na nossa era industrializada, como reflexos da urbe cosmopolita, pintados pela cor da nossa cultura feita de mestiçagens e sonhos. Convocando a escultura, ou num campo mais largo da designada pintura expandida, o que descobri da produção recente de João Dias combina influências no neoconceptual anglo-saxónico, do minimalismo, com a cor da pop, em formas que provocam esse diálogo com o sentido da Pólis onde a paisagem tem deambulações de género.

Na visita ao atelier, em Viseu, espaço-tempo pleno de experimentação, tecnologia e poesia do caos, regressei (sempre com The Velvet Underground & Nico) a Ceuta, cidade autónoma de Espanha e que se localiza no norte de África, paredes meias com Marrocos e à sua Biblioteca Pública, o único projeto para um equipamento cultural, que conheço, que integrou na sua arquitetura um vestígio arqueológico do século XV, concretamente uma antiga casa muçulmana. As formas de tendência escultórica de João Dias, que ampliam a cor e luz no seu espaço interior, íntimo e confucional, têm o princípio daquela escavação no desenho do contemporâneo, como se a história se relacionasse com o diálogo que o artista provoca, na sua produção recente, entre a obra de arte, de tendência site specific, e as arquiteturas em combate. Pensei que não poderia ter sido no acaso que aquela visita e descoberta tinham ganho tom de fim de tarde e lembrei-me de Stig Dagerman (1923-1954):

É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.3

Pintura expandida, quadrícula da arqueologia, apreensão escultórica, cor, luz, poesia, indústria, força VS subtileza, arquitetura e paisagem, numa viagem desenhada por um artista que, como logo me deu a entender, se liga aos lugares e procura interpretá-los com a curiosidade de quem é artista mas atua para lá da escala da criação. João Dias fez um caminho, tendo realizado, desde 2006, múltiplas exposições, onde se incluem, da geografia nacional, Lisboa, Porto e Viseu, e cidades-mundo como Munique, Berlim, Gdansk, Barcelona, Múrcia, Londres, Paris, Los Angeles, São Francisco e Nova Iorque. Entre 2008 e 2012 viveu em Berlim, como consequência da atribuição de uma bolsa INOVART. As suas obras marcam presença em importantes coleções como a da Fundação PLMJ, Edge Arts Collection e a Multiples Collection of Carpe Diem. Desde 2018 é, ainda, Diretor Artístico do POLDRA – Public Sculpture Project Viseu.

Os caminhos que escolhe acompanham a vida e a ousadia com que a vive. Em Berlim, a base do seu trabalho foi o desenho e, entre o regresso a Lisboa e os primeiros anos em Viseu, a pintura ocupou o espaço sideral da ação. Expandiu-se para a terceira dimensão e começou, na provável consequência de desafios paralelos, a pensar o espaço público. Voltamos, com Patricia Phillips, a uma ideia de John Berger sobre emancipação e participação popular:

A arte pública não é pública só porque está ao ar livre (…) é pública porque é uma manifestação de atividades artísticas e estratégias que utilizam o público como a génese e o tema para analisar. É pública por causa do género de questões levantadas ou postas, e não pela sua acessibilidade ou número de espetadores (…).4

No momento em que a sua expressão, de natureza industrial, mas arqueológica ao mesmo tempo (no sentido em que esconde, pela semiótica da cor e, por vezes, da luz, um segredo, uma catarse e um atropelo emocional), se expande para a paisagem, interfere com os edificados e as arquiteturas, João Dias interpela os públicos, muito para lá da dimensão contemplativa da pintura que o fez acreditar que estava para a Arte no meio caminho do Olimpo que lhe pertence. Num dos projetos que tem em desenvolvimento, e que teve a cortesia de partilhar comigo, aproxima-se do seu papel de mediador e dialoga com a História da Arte, introduzindo elementos das múltiplas possibilidades digitais que também são do seu tempo. Chamar-lhe-ia ousadia porque, regra geral, conhecemos mais exemplos de artistas que recuam do terceiro plano da criação para o segundo, pelo conforto comercial que a pintura tem. João Dias faz o caminho inverso, expande-se, nunca perdendo o lugar íntimo da folha em branco em que desenha para se encontrar. Porquê Viseu? Porquê trocar Lisboa por Viseu, depois de Berlim? Por amor. Ousadia, reforçaria. Escreveu Roland Barthes (1915-1980):

Dois poderosos mitos fizeram-nos acreditar que o amor podia, devia sublimar-se em criação estética: o mito socrático (amar serve para “criar uma multidão de belos e magníficos discur- sos”) e o mito romântico (produzirei uma obra imortal escrevendo a minha paixão).
No entanto, Werther, que anteriormente desenhava muito bem, não consegue fazer o retrato de Carlota (mal pode esboçar a sua silhueta, que é precisamente o que nela o prendeu). “Perdi… a força sagrada, vivificante, com que criava mundos à minha volta.” 5

Mas João Dias vai, como disse, na direção do Olimpo, no contínuo da expansão, sem perder o lugar íntimo que em todos nós convoca e nunca deixando de nos fazer viajar aos tempos imemoriais que a arqueologia devolve ao presente. Há qualquer coisa nas suas formas de completamente original, o resto é caminho: o feito e o que está por diante.

Em A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS João Dias apresenta as obras Segmento de transporte de luz #1, Segmento de transporte de luz #2, Segmento de transporte de luz – retangular, Secção de transporte de água #1, Secção de transporte de água #2, Segmento transporte feixe de luz, Módulo captação de luz_01, Módulo captação de luz_02 e Fragmentos de captação de luz, todas de 2020 e 2021 e com recurso ao ferro, poliestireno e cimento reforçado, cuja narrativa se encaixa no corpo global do seu trabalho. Desta vez é a luz, híbrida e não matérica, que acrescenta variação de cor à obra.

Helena Mendes Pereira

 

1 BERGER, John – Modos de Ver. Amadora: Editorial Gustavo Gili, SA, 2005.

2 LÓPEZ, Natalia Poncela – Nem tudo é arte? Modos de olhar. Santiago de Compostela: Através editora, 2018. Página 23.

3 DAGERMAN, Stig – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer. Lisboa: Fenda, 1989. Página 19.

4 Citado em REGATÃO, José Pedro – Arte Pública e os novos desafios das intervenções no espaço urbano. Lisboa: Bond, 2010 (2a edição). Página 62.

5 BARTHES, Roland – Fragmentos de um discurso amoroso. Lisboa: Edições 70, sem data. Página 127.

 

Conheça mais sobre o artista e o seu trabalho em https://zet.gallery/artist/joao-dias-30178.

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