Miriam Makeba: a pós-memória da luta pela Liberdade na obra de Ângela Ferreira

A obra de Ângela Ferreira é uma espécie de reparação da História, um elogio aos heróis da resistência africana ao colonialismo, à opressão, à segregação. Entro no seu atelier, nos Coruchéus, em Lisboa, e vejo-a mergulhada no projeto sobre a Rádio Voz da Liberdade. O arquivo está organizado e afixado na parede. Ao arquivo seguem-se os desenhos que o ativam e interpretam. A artista esboça uma maquete de uma torre, uma forma que parte da linha do desenho, mas que é a presença, a pós-memória que se relacionará com o espaço de exposição, perpetuando este exemplo de ativismo. A Rádio Voz da Liberdade foi uma emissora de rádio em português, que operou a partir de Argel, Argélia, entre 1963 e 1974, durante o Estado Novo, dinamizada pela Frente Patriótica de Libertação Nacional. Fazia emissões três vezes por semana, destinadas a Portugal e às colónias africanas. Utilizava as instalações da Rádio Argel e colocava à disposição de portugueses exilados, sobretudo, uma possibilidade de comunicação com os seus. Manuel Alegre (Portugal, 1936) trabalhou 10 anos nesta emissora durante o período em que esteve exilado na Argélia.

Ângela Ferreira nasceu em Maputo, Moçambique, em 1958, e viveu na Cidade do Cabo, África do Sul, durante o Apartheid. Licenciou-se em escultura e obteve o seu Master of Fine Arts (MFA) na Michaelis School of Arts, Universidade da Cidade do Cabo, África do Sul e é doutorada pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa onde hoje é Professora Auxiliar. Vive e trabalha em Lisboa. Em 2007 foi a representante portuguesa na 52ª Bienal de Veneza, sendo este apenas um dos marcos de um percurso internacionalmente reconhecido.

Não obstante a sua condição de branca e privilegiada no país do Apartheid, cedo compreendeu as diferenças de afirmação entre a arte contemporânea produzida na Europa ou na América do Norte e a arte contemporânea Africana. Cedo compreendeu que o fim do colonialismo não eliminava as desigualdades criadas durante séculos de exploração. Esta consciência marcou as primeiras fases da sua produção artística e, muito em particular, a que marca a década de 1990. Através de processos de investigação histórica, começou a desenvolver projetos e corpos de trabalhos que refletem sobre as consequências do colonialismo e do pós-colonialismo na sociedade contemporânea, no que poderíamos enquadrar na condição de pós-memória.

A classificação de artistas “na condição de” pós-memória e não de artistas “da” ou “na” pós-memória deve-se à consideração de que a pós-memória não é uma categoria estética, nem um género artístico, mas uma condição objetiva e subjetiva que afeta os artistas, o tempo cultural, os produtores, a crítica, a museografia e o recetor anónimo destas obras, que tem de modificar os seus mecanismos de receção.[1]

Esta condição não é exclusivamente portuguesa, mas transversal a outros centros artísticos e às estruturas de criação e programação artística ocidentais e com um passado colonizador, de uma forma geral. Multiplicam-se publicações e exposições onde se valoriza a cultura dos povos oprimidos, investigando e exibindo a excelência da produção artística de comunidades que, inclusive, procuraram denunciar as circunstâncias de que eram vítimas.

When questioned about Black British Art in 1988, curator and historian Eddie Chambers revealed: “The function of Black art, as I saw it a few years ago, was to confront the white establishment for its racism, as much as to address the Black community in its struggle for human equality. I think Black art still has that role to play.”[1]

A pós-memória, apesar do prefixo “pós-”, não é o nome de nenhum processo que se siga à memorização ou recordação dos conhecimentos, e também não é idêntica à memória. À semelhança de muitos outros “pós-” que vimos brotar nas últimas décadas (pós-modernismo, pós-colonialismo, entre outros), o prefixo não é sinónimo de nada posterior no tempo e/ou no espaço. Sobre a pós-memória escreve Marianne Hirsch[2]:

Pós-memória é o termo a que cheguei com base nas minhas leituras autobiográficas de obras de escritores e artistas visuais de segunda geração. O “pós” em “pós-memória” assinala mais do que um atraso temporal e mais do que um local no rescaldo. O pós-modernismo, por exemplo, regista tanto uma distância crítica como uma profunda inter-relação com o moderno; o pós-colonialismo não significa o fim do período colonial, mas a sua preocupante continuidade, embora, em contraste, o pós-feminismo tenha sido utilizado para marcar uma sequela do feminismo.

(…)

A pós-memória descreve a relação que a geração após aqueles que testemunharam traumas culturais ou coletivos traz para as experiências daqueles que vieram antes, experiências que eles “recordam” apenas através das histórias, imagens e comportamentos entre os quais cresceram.

(…)

O trabalho pós-memória procura reativar e recuperar estruturas memoriais sociais/nacionais e arquivísticas/culturais mais distantes, reinvestindo-as com formas de mediação e expressão estética individuais e familiares ressonantes. A memória assinala uma ligação afetiva passada, um sentido precisamente de uma “conexão viva” encarnada.[3]

Marianne Hirsch desenvolve o seu estudo analítico da pós-memória a partir de três eixos: memória, família e fotografia, em articulação, no seu caso pessoal, com as memórias traumáticas do Holocausto, sugerindo que, mais do que uma compreensão da história e da memória a partir das marcas traumáticas que se transferem de indivíduo para indivíduo num núcleo familiar (ou emocionalmente tão próximo como um núcleo familiar), ou da discussão da legitimação como património, o estudo da pós-memória ilumina as questões éticas e teóricas que devem acompanhar a evolução da noção de trauma, memória, passado, identidade histórica e os chamados atos de transferência intergeracional.

A variável, no caso de Ângela Ferreira, é que a artista viveu em Moçambique, colónia portuguesa até 1975, na condição de colonizadora. Viveu na África do Sul, durante o Apartheid, na condição de branca, ou seja, experienciou os contextos, tendo tido a capacidade de se insurgir contra os mesmos e criando uma consciência crítica que traz essa dimensão ativista e de escrita da pós-memória para o seu trabalho. A sua pós-memória é a do elogio, a da manifestação de orgulho pelos seus conterrâneos, brancos ou negros, que ousa resistir, denunciar, não sucumbir ao instituído, não ceder.

O elogio destes cidadãos africanos que, em circunstâncias adversas, foram símbolos de resistência e de luta pela liberdade, começa, no trabalho de Ângela Ferreira, em 2011, com o projeto “Carlos Cardoso: Straight To The Point”. Carlos Cardoso nasceu na Beira, Moçambique, em 1951. Começa a trabalhar como jornalista em 1975, fundamentalmente em órgãos de comunicação social do Estado, os únicos que existiam até ao fim da guerra civil e às primeiras eleições multipartidárias. Neste sentido, em 1992 cria o diário Mediafax, seguido do Metical, em 1997, que também tinha transmissão por fax, o que evidenciava o seu engenho e a sua luta persistente pela difusão da verdade. Colabora com diversos órgãos de comunicação social mundial, denunciando a situação vivida em Moçambique. É assassinado a 22 de novembro de 2000, em Maputo, Moçambique, enquanto investigava um presumível caso de corrupção num dos maiores bancos de Moçambique. Ângela Ferreira mergulhou no arquivo de Carlos Cardoso e, através do desenho, iniciou um processo de ativação desse mesmo arquivo, usando a forma, a escultura e a instalação, para divulgar esta vida, este exemplo extraordinário de ativismo e de cidadania. A partir daqui a sua obra deixa de focar-se na exploração do trauma, a partir da prática da pós-memória e da memória construída pelo vivido, passando a artista a fazer um investimento positivo através da História e das estórias destes símbolos de excelência como são Carlos Cardoso, Miriam Makeba ou o projeto Rádio Voz da Liberdade. Ângela Ferreira constrói e explora os arquivos destas personalidades ou projetos do ponto de vista antropológico, sociológico e político, com o objetivo de traduzir em objeto e plasticidade a pós-memória da resistência.

Nesta exposição, patente na zet gallery de 11 de março a 27 de maio de 2023, apresentam-se obras de dois projetos que têm na vida e obra de Miriam Makeba ponto de partida: Dalaba: Sol d’Exil, de 2019 e A Spontaneous Tour of Some Monuments of African Architecture, de 2021.

Cantora, compositora, atriz, embaixadora da ONU e ativista, Miriam Makeba (ZA, 1932-2008), é também conhecida como “Mama Africa”. Nasceu no dia 4 de março de 1932, em Joanesburgo. Nos anos 50, começou a colaborar com os Manhattan Brothers, cantando uma mistura de blues com ritmos tradicionais sul-africanos.

Em 1960, participou no documentário anti-apartheid “Come Back, Africa” e esteve presente no Festival de Veneza. A receção que o filme teve na Europa e o que a artista poderia enfrentar se regressasse à África do Sul, ditaram um não-regresso ao seu país.

Em Londres, encontrou-se com Harry Belafonte (EUA, 1927), cantor e ator afro-americano que viria a ser responsável pela sua entrada no mercado norte-americano. Através de Belafonte, gravou vários discos de grande popularidade, incluindo a canção “Pata Pata”, que se tornou num sucesso mundial. Em 1966, os dois ganharam o Prémio Grammy (categoria de música folk) com o disco “An Evening with Belafonte/Makeba”. Makeba também trabalhou com o músico brasileiro Sivuca.

Em 1963, depois do seu testemunho sobre as condições dos negros na África do Sul, perante o Comité contra o Apartheid da ONU, Miriam Makeba viu os seus discos e a sua nacionalidade banidos da África do Sul. Em 1968, casou com Stokely Carmichael (Trinidad e Tobago, 1941-1998), conhecido ativista do Black Power e porta-voz dos Panteras Negras. A relação com Carmichael motivou o cancelamento dos seus contratos de gravação e das suas digressões artísticas nos EUA. Miriam Makeba era, assim, expulsa de um país pela segunda vez.

Como consequência, Makeba e Carmichael foram viver para a Guiné-Conakry, tornando-se amigos do presidente Ahmed Sékou Touré (Guiné, 1922-1984). Nos anos 80, Makeba foi delegada da Guiné-Conakry junto da ONU e recebeu o Prémio da Paz “Dag Hammarskjöld”.

Makeba separou-se de Carmichael em 1973. Continuou a vender discos e a fazer espetáculos em África, América do Sul e Europa. Em 1975, participou nas cerimónias da independência de Moçambique, onde cantou “A Luta Continua”. Em 1985, morreu a sua única filha e com a alteração da situação política na Guiné, que revelou Ahmed Sékou Touré como um terrível ditador, Makeba foi viver para a Bélgica, onde se estabeleceu. Em 1987, voltaria ao mercado norte-americano, participando no disco de Paul Simon “Graceland” e na digressão que se seguiu.

Em 1990, com o fim do regime do Apartheid e a revogação das respetivas leis, Makeba regressou finalmente à sua pátria, a pedido do presidente Nelson Mandela. Na África do Sul, participou em dois filmes de sucesso sobre a época do Apartheid e sobre a Revolta do Soweto, ocorrida em 1976. Em 2001, recebeu a Medalha de Ouro da Paz “Otto Hahn”. Continuou a participar em concertos um pouco por todo o mundo e os seus últimos álbuns gravados foram: “Keep Me In Mind” (2002) e “Reflections” (2004).

Miriam Makeba faleceu na madrugada do dia 10 de novembro de 2008, no hospital de Castel Volturno (Itália), vítima de uma paragem cardíaca após ter participado num concerto de apoio ao escritor Roberto Saviano. Este autor tinha sido ameaçado de morte pela máfia, por ter publicado o livro Gomorra (2007).

Ângela Ferreira apaixonou-se por Miriam Makeba e no mergulho que faz na descoberta da sua biografia e do seu exemplo, descobre a casa onde esta morou na Guiné-Conakry, em Dalaba. Dalaba é uma cidade da província de Dalaba, na região de Mamou, na Guiné. Miriam Makeba, visitou a cidade pela última vez em 1988, aquando de uma visita à sua sobrinha, N’Tombi Makeba, que habitou a casa nessa década. A paisagem de Dalaba terá proximidade à África do Sul e era uma forma de, estando em África, Miriam se sentir mais próxima das suas origens. Na descoberta desta casa, Ângela Ferreira começa um trabalho de exploração plástica e semiótica das formas e dos detalhes, que resulta na série Dalaba: Sol d’Exil.

Começamos com uma fotografia impressa da casa de Miriam Makeba (“Conakry”), fotografia essa que se cola na parede do espaço expositivo, marcando-o, não o deixando indiferente à passagem. A recordação da pátria amada é-nos dada pela obra “Teleférico”, que alude ao teleférico da Cidade do Cabo onde a artista viveu. Num exercício de pós-memória, Ângela Ferreira espelha a sua experiência da que poderá ter sentido a cantora, recorrendo à simbologia ascensional do teleférico enquanto identificador e ponto de observação privilegiado da paisagem. Esta obra é acompanhada por um trabalho de pintura in situ em que a artista, regra geral, envolve artistas residentes nos locais onde realiza as suas exposições, sugerindo uma apropriação de um novo lugar como casa. As obras “Varanda”, “Alpendre” e “Telhado” são desconstruções e apuramentos de detalhes da casa, em que a artista convoca a sua linguagem plástica, as suas linhas desenhadas no ar e articuladas em vértices de perfeita esquadria. São fragmentos da casa, feitos fragmentos de lugares com diferentes quotidianos e que estabelecem a metáfora para a vida múltipla de uma artista total, Miriam Makeba, que cantava em todos (ou quase) dialetos africanos, bem como em diferentes línguas oficiais de outros países, apropriando-se da alma da palavra. Misturam-se as madeiras e os metais, sendo os materiais a paleta da escultura. A série integra ainda “5 Posters” com a sugestão da justaposição de discos (de ouro?!) sobre um texto sobre a cantora e ativista porque, no caso de Miriam Makeba não podemos dissociar a sua voz e o seu talento da sua luta pela Liberdade. Nesta exposição apresentamos ainda, de forma inédita, um grupo de desenhos que antecedem e precedem a produção das esculturas e que são essenciais para a compreensão daquele que é o processo criativo da artista.

Dalaba: Sol d’Exil acentua em Ângela Ferreira um interesse pelas tipologias e características da arquitetura tradicional e popular africana, bem como pela divulgação dos seus autores. O elemento arquitetónico está altamente presente em toda a obra de Ângela Ferreira que cedo percebeu, também no contacto com o filósofo Joseph-Achille Mbembe (Camarões, 1957), que há em cada arquivo um lugar de acolhimento, um edifício guardador, um contentor que carece, em si mesmo, de uma abordagem holística. A Spontaneous Tour of Some Monuments of African Architecture, série de 2021, inclui a obra “airport tower” que recupera as torres a que Ângela Ferreira já nos habituou, mas recriando uma estrutura em que coabitam materiais endógenos, como o bambu e a ráfia, e industriais, como o ferro, o vidro, entre outros, num exercício reflexivo sobre a pluralidade africana e sobre a forma como coabita o desenvolvimento e a tradição. Desta série fazem ainda parte 35 pequenos formatos onde se incluem desenhos e fotografias que ligam este projeto com o de 2019 e recuperam a imagem de Miriam Makeba.

Nesta exposição, na certeza da excelência de uma artista como Ângela Ferreira, que constrói em linha, desconstrói em forma e afirma uma posição que parte da ativação do arquivo para a criação de consciência crítica sobre o colonialismo, o pós-colonialismo e os seus heróis, apresentamos ainda um desenho singular de Miriam Makeba que revela a admiração da artista e a forma fácil como captou a sua beleza integral. Ouvir-se-á, claro, a voz da Liberdade de Miriam Makeba, num gira-discos a rodar e a desafiar-nos para não permitir que a História se repita.

Miriam Makeba: a pós-memória da luta pela Liberdade na obra de Ângela Ferreira é, mais uma vez, a forma de a zet gallery e o dstgroup não ficarem em cima do muro e tomarem uma posição: pelos direitos humanos, pela equidade, pela Liberdade, pela paz.

Helena Mendes Pereira

 

[1] Parker, Rianna Jade (2021). A Brief History of Back British Art. London: Tate published. Página 9.

[2] Nasceu na Roménia, em 1949, e é uma autora essencial para compreendermos o conceito. É professora de inglês e de literatura comparada e diretora do Institute for Research on Women and Gender na Columbia University. O seu interesse por estes temas parte da consciência e do trauma da pós-memória do Holocausto. Entre as suas publicações mais relevantes sobre o tema, devem destacar-se:

Hirsch, Marianne (1997). Family Frames – Photography narrative and postmemory. Harvard: Harvard University Press.

Hirsch, Marianne (2012). The Generation of Postmemory – Writing and Visual Culture After the Holocaust. Nova Iorque: Columbia University Press.

[3] Hirsch, Marianne (2008). “The Generation of Postmemory” em Poetics Today, nº29, página 103 a 128. Emhttps://warwick.ac.uk/fac/cross_fac/ehrc/events/memory/poetics_today-2008-hirsch-103-28.pdf em 02 de janeiro de 2023.

[1] Ribeiro, António Pinto (2021). Novo Mundo. Arte Contemporânea no tempo da Pós-Memória. Lisboa: Edições Afrontamento. Página 8.

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