‘O papel da arte na era do corpo digital’, por Ana Monteiro
A busca pelo corpo ideal, que desde sempre comportou em si uma certa noção de sacrifício, não é um fenómeno das sociedades contemporâneas mas, pelo contrário, baseia-se numa herança que herdámos já da antiguidade clássica. A noção socrática de que “o bom é belo” era uma máxima inalienável na cultura clássica. Na Grécia Antiga, o cidadão deveria treinar o seu corpo de modo a torná-lo tão belo e forte quanto possível, de modo a ter sucesso tanto na guerra quanto nas atividades públicas.
Uma certa obsessão pelo belo e pela forma ideal é um fenómeno transcultural que se manteve constante ao longo dos séculos. Contudo, na contemporaneidade, o advento da cultura de consumo veio hiperbolizar de um modo absolutamente sem precedentes este paradigma, lançando-nos num espaço em que a aparência é tida como reflexo do “eu” e um corpo a que não dediquemos o máximo da nossa atenção prejudica a nossa aceitação social.
A disseminação, através dos media, de imagens irrealistas de belos modelos, trabalhados até à perfeição através do uso de ferramentas digitais de edição de imagem, fez entrar em crise a ideia de “corpo orgânico” e definiu um novo padrão de beleza ideal e fictício que se procura através de recursos a extremos, como a cirurgia estética.
O enfoque na fragilidade da carne, na imperfeição, no envelhecimento e na morte como ameaça constante alimenta a insatisfação para com o corpo real e incentiva diversas práticas cujo intuito é “colmatar” as deficiências do orgânico através do recurso aos mais variados procedimentos estéticos: a era do “pós-orgânico” celebra a condição do corpo artificial.
A afirmação “anti-paradigma”
Num movimento inverso àquele que é produzido pela cultura visual da sociedade de consumo, vários são os artistas que, na contemporaneidade, se dedicam (ou dedicaram) à glorificação de corpos que esta cultura marginalizou – idosos, grávidas, deformados, etc.
Sobretudo a partir das últimas décadas do séc. XX, o corpo passou a ser alvo de expectativas e pressões socias sem precedentes e, nesse sentido, as obras de muitos artistas atuantes na contemporaneidade passaram a concentrar-se na noção de imagem corporal, objetificação do corpo e relação entre “alma” e matéria.
Frequentemente, os artistas que se dedicam a esta temática, apresentam-nos alternativas, quase sempre marginalizadas, às imagens idealizadas e repetidas nas páginas brilhantes das revistas, numa tentativa de levar o espetador a questionar as suas expectativas relativamente ao corpo perfeito, através do confronto com a realidade da imperfeição.
Artistas como Francis Bacon e Lucian Freud, mas também Jenny Saville, Eric Fischl, Stanley Spencer, Paula Rego, Melanie Manchot, Rineke Dijkstra, John Coplans, Ron Mueck entre tantos outros, seguem claramente a tendência pós-moderna de destabilização das convenções sociais hierarquizadas no cânone da cultura ocidental (no que ao paradigma de corpo ideal diz respeito), confrontando-nos, através das suas obras, com uma visualidade que glorifica a condição humana – imperfeita, visceral, vulnerável e diversa – uma visualidade que a cultura mediatizada tem vindo a marginalizar sistematicamente.
Através da produção de imagens de profundo conteúdo humano, assente em vivências que se identificam como reais, estas obras erradicam a ideia de perfeição enquanto ideal, glorificando as suas figuras como entidades imperfeitas, ao invés de perfeitas utopias.
Ana Monteiro
maio 2016