Vida e obra de Miró – Parte II

Um monge, um soldado e um poeta

Miró instalou-se em Paris em 1920, depois de ter tomado todas as disposi­ções e precauções necessárias à sua natureza e aos meios precários de que dispunha. Precisa-o numa carta: «Eu que NADA possuo neste momento, te­nho que ganhar a minha vida, seja em Paris, em Tóquio ou na Índia.» Mas, de qualquer modo, parece que a mãe lhe teria dado dinheiro para cobrir as despesas da instalação.’ Alojou-se num hotel dirigido por compatriotas onde residiam numerosos intelectuais catalães. Não tinha atelier, o que não o inco­modava visto que não estava em estado de pintar. A cidade deslumbrara-o Durante a sua estada em Paris, encontrou-se com Picasso cuja mãe conhe­cera quando se deslocara a sua casa, em Barcelona, para ver as telas do fi­lho. Picasso mostrou-se cordial com ele e pronto a dar-lhe o seu apoio. «Ao princípio, Picasso, claro, muito reservado comigo, mas pouco depois, após ter visto o meu trabalho, ficou cheio de entusiasmo. Conversámos durante horas no seu atelier, muitas vezes…»

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Dalmau veio a Paris e estabeleceu contactos para Miró. Conseguiu colocar algumas telas em colecções particulares e apresentou a obra do pintor a pessoas influentes. Tristan Tzara chegou, também ele, a Paris e começou as manifestações dadaístas na Primavera de 1920. Miró que conhecia de Barce­lona alguns artistas ligados ao dadaísmo, interessava-se bastante pelo movi­mento e chegou mesmo a assistir a um festival dadaísta. A anarquia poética deles impressionava-o muito.

A estada parisiense de Miró produzia no pintor efeitos estimulantes e con­traditórios: descobria o Louvre e os seus tesouros e, simultaneamente, fre­quentava um grupo niilista que fazia da destruição da arte urna instituição. Miró escrevia em 1920: «Prefiro os disparates de Picabia ou de qualquer outro dadaísta idiota à facilidade indolente dos meus compatriotas de Paris que copiam Renoir (cujo único valor hoje é o de ser um clássico) ou que produ­/e In urna mistura diluída de Sunyer e de Matisse.» À sua maneira, parecia repetir a mensagem de uma obra de Picabia realizada em 1920. Esta repre­sentava um quadro contendo um macaco empalhado e desengonçado assim como várias inscrições «Retrato de Cézanne — Retrato de Renoir — Retrato de Rembrandt».

Passado o primeiro movimento de admiração, reencontrou a sua ponderação e começou a observar o meio artístico parisiense com uma visão mais crítica. Tinha que reconhecer que uma boa parte da arte contemporânea não provinha da imperiosa necessidade de exprimir urna ideia iminente mas que, muitas vezes, era produzida para ser vendida. Miró, o idealista e o moralista, que possuía ele próprio tão pouco dinheiro, não podia aceitar isso. Numa car­ta que revela simultaneamente as suas exigências em relação a si próprio e a sua óptica religiosa, Miró explica: «Vi algumas exposições de pintores mo­dernos. Os franceses estão adormecidos. Exposição Rosenberg. Obras de Pi-casso e de Charlot. Picasso muito fino, muito sensível, um grande pintor. A visita ao seu atelier desmoralizou-me. Tudo isto é pintado tendo em vista o seu negociante de arte, o dinheiro. Uma visita a Picasso é como uma visita a urna primeira bailarina com imensos pretendentes … Noutros sítios, vi qua­dros de Marquet e de Matisse; há-os muito bonitos mas fazem muitos para os negociantes e pelo dinheiro. Nas galerias, vemos muitos desperdícios in­sensatos… A nova pintura catalã é infinitamente superior à pintura francesa; estou absolutamente persuadido que a arte catalã será a nossa salvação. Quando é que a Catalunha permitirá aos seus verdadeiros artistas ganharem o bastante para comer e pintar? O modo bastante rude como a Catalunha tra­ta as coisas do espírito poderia ser o Calvário da redenção. Os Franceses (e Picasso) estão condenados porque seguem um caminho traçado e pintam para vender.»”

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Nu em pé (1918)

Em Julho de 1920, Miró encontra-se, de novo, em Montroig e, ainda sob a influência das suas impressões parisienses, recomeça a pintar. Mas foi a se­gunda estada em Paris que marcou verdadeiramente uma viragem no seu tra­balho. Em 1921, conseguiu alugar o atelier do escultor espanhol Pablo Gar­galho que regressava a Barcelona todos os Invernos. Este atelier situava-se na Rue Blomet e o acaso que acaba por fazer bem as coisas, fez com que Miró tivesse por vizinho André Masson.

A maior parte dos historiadores qualificam os anos que Miró passou na Rue Blomet como fase heróica da sua carreira. Este fala de «um lugar decisi­vo, de um momento decisivo para mim».” Nos seus Souvenirs de la Rue Blo­met, recolhidos por Jacques Dupin, relata a sua vida de 1921 a 1927 com tons alegres e cheios de vida. Segundo ele, «a Rue Blomet, era a amizade, era uma troca de ideias apaixonada e a descoberta de novas ideias num círcu­lo de amigos maravilhosos»

A lista de todos os escritores e artistas com quem Miró se dava nessa altu­ra lê-se como um livro de história das ideias da época: citemos Max Jacob, Michel Leiris, Roland Tual, Benjamin Péret, Pierre Reverdy, Paul Eluard, André Breton, Georges Limbour, Armand Salacrou, Antonin Artaud, Tristan Tzara e Robert Desnos, sem esquecer Ernest Hemingway, Ezra Pound e Hen­ry Miller. Especialmente os poetas do grupo exerceram uma grande influên­cia sobre Miró. Estes espíritos inovadores queriam desembaraçar-se de qual­quer estrutura e das metáforas deformadas para dar lugar às sensações ime­diatas. A poesia devia tornar-se visual e aproximar-se do objecto. Miró, tão reservado e trabalhando com uma disciplina quase militar, foi introduzido neste meio por André Masson que era o seu oposto. Este podia trabalhar ro­deado de visitas, Miró, esse precisava de calma e de solidão.

Nu ao Espelho (1919) O bordado do pufe quase que é palpável, enquanto a criatura feminina de formas angulosas se furta ao olhar do espectador. O seu corpo assemelha-se a uma armadura, o rosto traduz uma calma interior plena de mistério.

A primeira exposição de Miró em Paris realizou-se em Abril de 1921 na Galerie Licorne, conhecida pelas suas exposições de arte de vanguarda. Não foi vendida tela alguma. Mesmo para um Miró que se considerava como um artista puro e desinteressado, este fracasso comercial e artístico deve ter sido uma enorme decepção. Mais tarde, em 1928, já distanciado no tempo sufi­cientemente, declarou «que se esta exposição não tinha sido notada por mui­ta gente, aqueles que falavam dela tinham imensa esperança em mim e esta­vam persuadidos que eu iria longe e que, no final, eu seria aceite». No Ve­rão seguinte, mal acabou de chegar a Montroig, começou logo a desembara­çar a sua pintura de todas as convenções estilísticas que a embaraçavam e fez desaparecer quase completamente o que fora buscar ao fauvismo e ao cu­bismo. Seguidamente, começou a procurar numa nova direcção e a recorrer a formas geométricas muito simples. Pouco tempo antes, durante a Primeira Guerra Mundial, Marcel Duchamp e Francis Picabia tinham sido precursores ao pintarem «máquinas» fantásticas feitas de rodas dentadas, de botões, de tubos, de parafusos e de muitos outros objectos abstractos e indefiníveis. Es­tas máquinas tinham, muitas vezes, uma conformação anatómica e, mais ain­da, sexual. Apesar de a sua concepção ser altamente inventiva, elas inscreviam-se, no entanto, no novo movimento de abstracção geométrica que se desenvolvia na Europa sob a forma do construtivismo, em redor da revista De Stijl e da Bauhaus. Miró seguiu esta tendência sob o patrocínio de Pica­bia, sem, no entanto, subscrever as ideias de reforma política e social ligadas ao movimento. No seu Nu em Pé, de 1921, Miró colocou a figura feminina sobre uma construção de paralelogramos e de losangos assentando­-lhe o pé esquerdo num rectângulo negro. O fundo é azul e anguloso, delimi­tado por faixas negras sendo uma interrompida por uma linha branca com o mesmo traçado angular. Os seus seios pontiagudos e firmes parecem-se com obuses. Simultaneamente, a expressão fixa do seu gesto e o desenho da sua anatomia lembram as figuras hieráticas do românico, tal como o redondo branco do joelho e o fraccionamento do corpo. Em vez de martelar, como ha­bitualmente, as suas paisagens com motivos repetitivos, Miró compôs aqui um ritmo contrapôntico. O olhar desloca-se pela tela num movimento em ziguezague, desde a massa negra sob o pé ao joelho branco, aos pêlos do pú­bis, depois aos seios e às unhas brancas até aos cabelos negros. A linha bran­ca à direita ilumina a direcção para onde o modelo olha. A massa sombria que está à sua frente lembra a que se encontra sob o pé. Esta composição, que é mais vazia e lisa, aparece, de facto, como uma grande construção. Na realidade, o quadro apresenta em primeiro lugar uma mulher e depois um conjunto de peças que se podem encaixar. Miró demonstra assim que os de­senhos geométricos, através da sua renovação, podem contribuir para um equilíbrio das formas. A partir daqui, este equilíbrio terá uma presença pró­pria nas composições de Miró, em vez de nelas ser, apenas, um elemento secundário.

A Quinta, uma das suas obras-primas e, decerto, a mais conheci­da, foi realizada, também ela, em 1921. Seria difícil explicar, sem as influên­cias artísticas recentes, as correspondências e os elementos abstractos que abundam neste quadro, quer se trate do círculo negro e da base branca do eu­calipto, no centro da composição, do quadrado vermelho à direita a desafiar a espacialidade da capoeira que, no entanto, ele descreve, das telhas verme­lhas e das formas rômbicas negras, à esquerda, ou até da lua redonda (o sol poderia ser assim tão pálido?), da roda do carro vermelha ou, finalmente, do poleiro do galo. A suavidade lírica e as formas orgânicas das primeiras paisa­gens desapareceram. Desta vez, Miró escolheu numerosos objectos de metal ou de madeira que, em vez de se envolverem uns com os outros, se desta­cam todos claramente sobre o fundo da composição. Observamos a firmeza picante do Nu em Pé no tronco eriçado de picos do eucalipto, desfo­lhado em parte, assim como na terra seca e pedregosa de cor vermelho-acastanhada. Miró retomou alguns aspectos do estilo românico: por exemplo, o tamanho de alguns pormenores não corresponde à realidade mas está relacionado com a importância que lhe confere o pintor. Miró escreveu: «Não acredito que se deva dar mais importância a uma montanha do que a uma formiga (mas um paisagista não vê isto)…»

Na época em que construía, nas suas obras, a hierarquia dos animais e dos homens, o artista do românico estava consciente que lhe era necessário dominar a rigidez do seu isolamento fixando-os solidamente nas suas composições através de um campo de tensões entre o equilíbrio e a simetria. Era uma forma superior de arte, comparável à arquitectura: de facto, tratava-se menos de contar uma história ou de mostrar a realidade do que de erigir um quadro conceptual para uma maneira de pensar cristã.

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A Quinta (1921-22). Esta obra-chave de Miró oferece diversas interpretações. Ernest Hemingway comprou-a porque via nela a paisagem e mentalidade catalãs.

Não foi fácil para Miró associar os elementos contemporâneos e os elementos tradicionais, porque quis à viva força evitar fazer estilo. «Durante os nove meses em que trabalhei em A Quinta, pintava durante sete ou oito ho­ras por dia. Sofri terrivelmente, horrivelmente como um maldito. Apagava muito e começava a desembaraçar-me de todas as influências estrangeiras e a tomar contacto com a Catalunha.»

O tema central de A Quinta parece ser o da fecundidade — talvez uma me­táfora sobre a produtividade artística — sublinhada por motivos aferentes, re­partidos através de toda a superfície do quadro à maneira de uma tapeçaria medieval. É fascinante «ler» nele as alusões repetitivas. No primeiro plano, Miró colocou um regador com ralo encarnado, diante do qual parece inclinar­-se um balde. Atrás dele está colocado um jornal cujo título L’Intransigeant, amputado pela dobra, apenas comporta a sílaba «L’Intr». Como o jornal está orientado na direcção do regador, tem-se a impressão de que esta única síla­ba é uma recomendação dirigida àquele que rega. Se se seguir o caminho es­treito que parte das telhas, o olhar é atraído por sete pegadas de um pé des­calço que se interrompem abruptamente sem terem chegado a parte alguma. No entanto, o caminho conduz a um poço ou a um bebedoiro, por cima do qual está inclinada urna mulher. A seu lado encontram-se potes, um balde e uma garrafa. Ela está de costas e, um pouco mais longe, mais ou menos no centro da composição, como se fosse um ponto de fuga principal, está uma figura glabra e nua agachada, tal como uma estátua de ídolo. Tem um aspec­to de feto ou de batráquio e metade do seu corpo está sublinhada com uma cor sombria.

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A quinta de Montroig representava para Miró a fonte de energia vital: «… A terra de Montroig: sinto-a literalmente e até cada vez mais; já em pequeno a sentia. Era para mim uma necessidade física.»

Será o seu filho? O cão ladra-lhe a ela ou à lua tal como num dos seus qua­dros ulteriores? Atrás do poço, uma mula faz trabalhar uma nora ou um moinho. Anda à roda, incansavelmente, sem chegar a parte alguma, mas, de qualquer modo, alguma coisa faz. O galo, os coelhos e a cabra são, nesta dupla leitura simultânea, alusões sexuais e seres vivos numa quinta de Mon­troig. A vegetação é pobre: os campos estão localizados noutro sítio ou a quinta, que transmite uma impressão de desleixo, já não é explorada. Na zona inferior esquerda da tela, desabrocha uma imensa planta selvagem. Tal­vez se trate de um desses cactos do Algarve que apenas dão flor de sete em sete anos, num ciclo de lenta e dramática fecundidade. Observando a evolu­ção artística laboriosa de Miró, estes pormenores podem indicar que ele se sentia aproximar finalmente da sua verdadeira fonte de inspiração.

A Quinta está dominada pelos enquadramentos ligeiros da capoeira e do estábulo assim como pelo eucalipto no meio. Pode-se qualificar este quadro de arquitectural devido à sua construção minuciosa. Miró retocou-o numero­sas vezes, transportando-o consigo entre Paris e Barcelona. Insistiu sempre na dificuldade que teve para o acabar. Exagerando até o tempo que passou com esta tela, declarou numa entrevista já quase no fim da sua vida: «Preci­sei de quase dois anos para terminar este quadro mas não porque tivesse difi­culdades a pintar. Não, a razão por que isso durou tanto tempo foi porque o que eu observava ia-se metamorfoseando. O quadro era absolutamente realis­ta. Não inventei nada. Se retirei a vedação da capoeira foi porque me impe­dia de ver os animais. Antes de se produzir a metamorfose tinha que registar o mais pequeno pormenor da quinta, que tinha ali, à minha frente, em Mon­troig. Por exemplo, copiava aplicadamente o grande eucalipto no centro da tela. Cada vez que me afastava do modelo, pegava num bocado daqueles paus de giz, com os quais as crianças da escola escrevem no quadro e fazia as correcções necessárias. Tinha a íntima convicção de que ao tentar fazer a síntese do mundo à minha volta, estava a trabalhar em algo de muito impor­tante.»

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A Mesa com Luva, 1921

A árvore com as suas raízes profundas e o seu potencial de crescimento é o emblema do povo catalão; o que explica, talvez, a razão por que Miró co­locou um eucalipto no centro do seu quadro. O arquitecto barcelonês Antoni Gaudí, um compatriota que Miró muito admirava, tinha, também ele, feito da árvore a sua fonte de inspiração. Gaudí, que morreu em 1926 num aciden­te de eléctrico, apontou um dia um eucalipto diante da sua janela e declarou: «Uma árvore direita; suporta os ramos, estes suportam as ramificações que, por sua vez, suportam as folhas. E cada parte cresce harmoniosamente, mag­nificamente porque foi o artista-Deus, Ele próprio que a criou. Esta árvore não precisa de qualquer ajuda exterior. Todos os seus elementos estão equili­brados.» Mesmo sendo diferentes, os dois eucaliptos a que Gaudí e Miró se referem são metáforas com uma exactidão de expressão e de função natural, de todo um povo. Na maior parte das vezes, faz-se um paralelo entre as li­nhas ondulantes da pintura de Miró e as formas sinuosas da arquitectura de Gaudí para basear na arte nova a origem da linha de Miró. Poder-se-ia, no entanto, estabelecer ligações de urna outra ordem e menos evidentes, tais corno o mesmo método de trabalho ou a mesma propensão para reinventar a arte catalã, sobre fundo de tradição e século novo. Gaudí, que construía a maior parte das suas obras em pedra ou em tijolo em vez de materiais moder­nos, interessava-se, também, pela forma funcional tal como ela emergia da estrutura. As soluções arquitectónicas pouco convencionais com que ele contribuía para os problemas estáticos de peso e de apoio talvez tenham influenciado Miró muito directamente.

No entanto, podemos descobrir no quadro A Quinta uma outra infl­uência contemporânea, a dos Naïfs. Quando Miró pintou esta obra-chave em 1921, a pintura naïve acabava de ser reconhecida pela vanguarda como sendo no seu todo um género à parte. Henri Rousseau criara um realismo cinzelado que ao situar-se involuntariamente sob as exigências convencio­nais da arte, parecia humorístico, enigmático e até mesmo subvertido. Rous­seau, o primitivo autodidacta, era adulado e festejado pela vanguarda; a sua obra foi «falsa» na altura certa. À semelhança de Rousseau, que colocava as suas personagens em cena sobre uma tela de fundo, como uma criança coloca uma boneca dentro de uma casa de bonecas ou como um fotógrafo instala os seus modelos diante de um cenário de estúdio, Miró, também ele, pegava nos seus objectos, um por um, e colocava-os na sua composição. Mas, ao contrário de Rousseau que apenas fazia nascer nos seus quadros uma calma glacial, Miró conseguiu insuflar vida nos objectos de A Quinta. Sob este as­pecto, Miró, que passara uma parte da sua juventude na Catalunha rural, era, talvez, mais profundamente criança do que Rousseau. Todo aquele que co­nhece bem as crianças de pouca idade sabe que, para elas, nada, nem mesmo uma imagem bidimensional, é inanimado. Miró nunca se pronunciou muito sobre o sentido do seu quadro. Obstinava-se em dizer que representava Mon­troig. (Apesar de tudo, confessou ter mudado o aspecto da parede do estábu­lo, acrescentando-lhe musgo e brechas para que ficasse mais equilibrado com a capoeira.) Como nenhuma galeria se mostrou interessada, a tela foi adquirida por Ernest Hemingway. Mas para a comprar, foram necessárias todas as suas economias, depois, mais tarde, ofereceu-a à mulher que a empres­tou à National Gallery of Art de Washington, onde ainda a podemos admirar. Segundo Hemingway, Miró pretendia ter pintado a tela em nove meses, «o tempo de uma gravidez», frase que se refere intuitivamente à metáfora da fe­cundidade e da maternidade, presentes no quadro. Miró estava muito ligado a Montroig, àquela quinta tão familiar, mas antes de tudo, ele era um bur­guês da cidade que só vagamente se interessava pela verdadeira vida do cam­ponês. Na Espanha de 1930, cerca de metade da população activa espanhola era camponesa. Esta proporção aumentou no decurso da Segunda Guerra Mundial, fruto das dificuldades económicas. Nessa época, o próprio Miró terá considerado a quinta de Montroig como uma fonte potencial de rendi­mento. No seu caderno de memórias catalãs, referentes ao período de 1940 —1941, relata os seus esforços para reorganizar a vida de modo a tornar-se fi­nanceiramente independente. Mas sem se esquecer de permanecer um verda­deiro poeta e de «nunca deixar o homem de negócios apossar-se de mim… tenho de pensar a sério nesta história da quinta, isso permitir-me-á ter um es­tilo de vida independente e, o que é mais importante, manter este contacto di­recto com a terra e com os homens que a cultivam assim como com os ele­mentos que a ela estão ligados. Isso terá para mim um grande valor humano e enriquecer-me-á enquanto homem e enquanto artista».”

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A Lanterna de Carboneto (1922-23). Os objetos reduzem-se a formas de contornos precisos, colocados num fundo muito liso. Os cambiantes modulados da lanterna contrastam com a simplificação linear do fruto e da grelha.

À sua maneira, Miró era um verdadeiro romântico para quem a autentici­dade das pessoas e das paisagens servia de matéria-prima. Talvez até tenha conseguido captar o que, para ele, era essencial na quinta ao mesmo tempo que deixava exprimirem-se os estímulos que recebia do meio artístico con­temporâneo.

Retirado de Min, J. (1994). Joan Miró 1893-1983. Bona: Taschen.

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