‘O desejo do desenho como construção do real’, por Sílvia Simões

O nosso tempo, é o tempo da conectividade, do digital, dos dispositivos que possibilitam a comunicação de um para um milhão espalhados pelo mundo e de forma quase instantânea. Um mundo assente na comunicação electrónica, em rede, onde os elementos de comunicação são vários: imagens, sons, vídeos, todos eles disponíveis à distância de um clique. Um mundo que armazena e se substitui à memória analógica.

A democratização e facilidade de criação de imagens invadem as redes de partilha assumindo-se e sobrepondo-se ao real. Imagens que habitam e proliferam de maneira nunca antes possível e tudo isto provocado pela tecnologia digital. Não podemos estar alheios a este contexto que acreditamos que de maneira consciente, ou inconsciente tem efeitos na forma como nós construímos e pensamos com as imagens.

Na procura da resistência,  encontramos no desenho e na sua componente comunicativa enquanto instrumento gráfico ou linguagem não-verbal, que determina e conduz os processos de construção do pensamento, o espaço generativo que se motiva e regenera através de si mesmo para a construção de outras imagens que pretendem questionar a construção da realidade.

Neste texto, falaremos  do desenho como projeto autoral, e não do desenho na sua função operativa, que como sabemos é uma das mais antigas formas da sua existência.

É  no âmbito da sua inutilidade, da sua inoperância  que reclamamos o desenho  para o nosso trabalho enquanto artistas. Nem todos os desenhos explicam ou se explicam, existem outros desenhos que vivem apenas do principio do prazer, do desejo (Freud) como oposição à realidade.

É por este desejo de construir uma imagem que continuo a desenhar. Um trabalho que assenta fundamentalmente na construção processual entre a prática e sua reflexão. Pensar e utilizar o desenho como instrumento, como linguagem abarca um conjunto de componentes como a linha, a mancha o ponto, elementos abstractos de configuração que nos permitem de forma dialógica iniciar um processo que temos antes de mais que reconhecer e compreendê-lo. Identificado que está, passamos a determinar um conjunto de ações e estratégias que nos permitem tomar decisões que nos levem à resolução.

O desenho, de acordo com o entendimento que faço dele, é impossível de ser dominado. Podemos evoluir gradualmente na sua aprendizagem, mas nunca atingir o seu total domínio, isto porque, contrariamente às capacidades fechadas como a leitura, a fala e a condução, que uma vez dominadas encerram o seu ciclo, quanto mais se avança na capacidade de desenhar mais opções divergentes surgem, mais o leque de opções aumenta, mais profundo se torna o alcance dos nossos problemas.

Antes de mais, temos que ter motivação. A motivação pode ser qualquer vontade de entender através do desenho este ou aquele problema, este ou aquele processo de construção, esta ou outra qualquer encomenda que façam ao artista. Como já referimos anteriormente, a transversalidade do desenho permite-lhe este espaço de se agregar a uma qualquer prática, como também ser pertença exclusiva do seu próprio território, ou seja o desenho.

No meu trabalho, a presença da memória é fundamental. Daí as dinâmicas envolvidas no processo criativo de desenhar estarem mais próximas de um pensamento que se realiza através da comparação, da análise e relacionamento de dados, do que de um pensamento causal de estrutura linear, em que nos limitamos de forma sequencial a encontrar uma solução.

Entendemos o desenho como pensar um processo  pelo qual nos aproximamos ou afastamos da origem, distinto do pensar contemplativo , e que por isso opera com vários instrumentos, dependente das situações, enquadrado no tempo e no espaço, resultado de um conjunto de experiências. Na verdade, o nosso pensar é fruto do nosso enquadramento cultural e da nossa educação. Estamos condicionados pelos modelos que vamos criando na nossa mente e com os quais fazemos a leitura do real.

Coloco a problemática em volta da ideia do registo da memória, pois embora em consciência de estarmos a falar de imagem, o meu interesse está no processo de desenhar. Procurar nesse diálogo que se estabelece entre quem faz e o que se faz e o que resulta… É sem dúvida a ideia de marca, de registo, de desistência, de persistência, de acidente, dúvida e recomeço que me encanta na prática do desenho. O registo/corpo como único, a impossibilidade da repetição e os registo/mecânico/ e registo/transferência, fazendo alegoria do reprodutível. Digo alegoria pois cada transferência, cada impressão são únicas. A impossibilidade ou falência da reprodutibilidade, permite-nos o acidente, o erro que torna possível e ainda mais enriquecedor, o processo da construção dos meus desenhos.

Todos os trabalhos são produzidos em folhas de papel branco, que podem conter uma marca inicial. Uma marca que existe antes do desenho que ativa o processo. A partir daí começo a construir elementos gráficos que podem ser manchas ou linhas, tendo sendo como imaginário imagético a ideia de paisagem/ espaço caminhos que se percorrem, corpos que se aproximam, que se repelem, que se invadem, tudo isto num espaço de tempo…

Os materiais utilizados são a grafite que possibilita uma mancha forte e agressiva ao papel, a borracha que por sua vez retira a grafite deixando no rasto da sua marca uma história. A linha como elemento condutor de um percurso que se pode apagar, a esferográfica na marcação de um tempo que não se apaga, a linha de costura a marcar um caminho que tem frente e verso, as colagens que se fixam e sobrepõe a registos anteriores. O desenho constrói-se pela sobreposição, pelo acumular. A história da construção do desenho é ele próprio o desenho. É a tradução, ou melhor, a criação de um outro sentido, um sentido visual,  em que elementos gráficos e registos dão corpo a elementos da natureza que revisitamos para a construção das nossas imagens.

As várias memórias são o arquivo. Não as fotografias ou os vídeos, mas a construção à posteriori e revisitada dessas memórias. As impressões, as marcas, as cores, os cheiros, as texturas… O resto, o resto é construção.

Estes despojos, restos de experiências em distintos lugares, remetem-nos para a construção de uma mostra não linear, em que desenhos criam  um outro sentido, um sentido visual que se assume como uma narrativa não linear, assumindo que à posteriori, também estas imagens serão despojos de uma memória futura.

Sílvia Simões

fevereiro 2016

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