A OUTRA MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS
exposição individual de Juan Domingues (VE, 1981)
a partir do livro de Valter Hugo Mãe (AO, 1971)
29 de janeiro a 16 de abril de 2022, zet gallery, Braga
A primeira fotografia que Juan Domingues (VE, 1981) me enviou de obras que integram a exposição A OUTRA MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS foi a de uma espécie de uma Pietà (ou Piedade), uma imagem iconográfica da arte cristã em que se representa a Virgem Maria com o corpo morto de Jesus nos braços. No caso de Juan Domingues, esta mãe de todos os crentes em Cristo, segura o corpo morto de um velho que morre só, longe dos seus. A solidão é um dos grandes medos da sociedade pós-moderna e é também o meu maior medo: morrer só significa que se viveu só durante uma parte (considerável) da vida. Não sozinho, mas só.
Bloqueei dias e não consegui pensar em nada. Nem no Juan Domingues, nem nestas obras, muito menos na exposição e no amarelo – cor preferida do Valter Hugo Mãe (AO, 1971) porque “quando usamos parece que deixamos o sol entrar”, por mais que o cenário seja escuro, dantesco, ruim – com o qual pintamos parte das paredes da zet gallery, não só para o sol entrar, mas para que o livro se note nas palavras e na essência de toda a proposta de curadoria. Mas, como disse, bloqueei com aquela Pietà do Juan Domingues e eu, que já vi tantas vezes esta iconografia, representada pelos maiores nomes da História da Arte e em obras em alguns dos maiores museus do mundo, não sabia como mudar o mundo se as minhas vísceras não sabiam sequer lidar com aquela forma de ter a fé de que, alguma mãe, nos carregará no final.
Ele acreditava que estava a morrer. Disse-mo repetidamente. Eu nunca fiz caso. Assegurava-o que estava apenas deprimido. Disse-lhe que estava a ser irlandês.
Mas o que será que ele quis dizer quando disse no táxi que tudo o que fizera não valia nada?
Por que razão fazia um balanço da sua vida?
Porquê uma visão tão definitiva?
E qual terá sido a minha postura, o que foi que eu disse, terei respondido o equivalente a não sejas ridículo, não te ponhas a chamar a atenção, o que é que fazemos para o jantar?
Será isso que os vivos dizem sempre aos moribundos?
O que te apetece jantar?[1]
Recentemente vi o belíssimo documentário “Joan Didion: The Center Will Not Hold” sobre Joan Didion (EUA, 1934-2021), produzido pelo sobrinho Griffin Dunne (EUA, 1955), e recordei um monólogo de Eunice Muñoz (PT, 1928) a que assisti há anos em que a atriz portuguesa interpretava a versão para teatro d’ “O Ano do Pensamento Mágico”, texto que parte das memórias da norte-americana no ano que se segue à morte do marido, companheiro de toda a vida, e da filha. No dia em que assisti a esse espetáculo, que nunca mais esqueci, percebi que a doença e a morte, dos que me são mais próximos, eram temas com os quais não sabia, nem sei, lidar. A ideia do fim de alguém é aterradora e a forma desse fim ainda mais.
A primeira vez que li “a máquina de fazer espanhóis” do Valter Hugo Mãe, assistia à morte lenta do meu avô materno, acamado, mas em sua casa onde, até ao último dia, mereceu os cuidados da família.
Andamos sempre à busca de soluções e nunca aprendemos que não há soluções. As nossas soluções são apenas remendos, e com eles vamos vivendo, de remendo em remendo. Mas, em boa lógica, se não houver solução, também não haverá problema; ou que o problema e a solução são a mesma e a única coisa. Por isso, o melhor que se pode fazer quando se tem um problema é vivê-lo.[2]
A doença do meu avô era um problema sem aparente solução e, por isso, não era um problema, mas apenas uma circunstância que fez parte da vida de todos nós mais de uma década. Depois de assistir ao documentário, revivi tudo isto e apeteceu-me escrever este texto sobre este projeto bonito para o qual, a dada altura, o Juan Domingues me desafiou, não sabendo ele que o livro do Valter Hugo Mãe, em determinado momento da minha vida, tinha ditado um compromisso que estabeleci com os meus: não os abandonar e garantir que vivem da melhor forma possível até ao último dia, seja numa qualquer instituição, ou na casa que construíram, se assim for possível. E, se não existirem condições de se viver com dignidade, que possa cada um de nós usufruir desse último e cabal ato de Liberdade que é escolher entre viver ou morrer.
A vida e a morte são duas condições recíprocas e, parafraseando Montaigne, que loucura é essa de nos maravilharmos por ver nascer e, ao mesmo tempo, contristarmo-nos com a morte? Com a morte súbita, inesperada, violenta, compreende-se. Mas com a morte num horizonte de um sentido de vida que se cumpre, não. Por isso, numa sociedade que prolonga artificialmente a vida, a possibilidade de a recusar tem de ser uma questão de cidadania que nos implica a todos.
Não apenas diante dos casos dolorosos onde a doença incurável não tem um tratamento que possa ser interrompido. Mas também como uma faculdade, da vida plena, de uma pessoa, mesmo não estando a morrer, poder decidir-se pela antecipação voluntária da morte, em condições que não conflituem com um dever de viver, que também não deve ser pensado tanto de cada um dirigido a si próprio, como de cada um querer sempre que os outros vivam, uma vida em que prevaleça a vontade genuína, persistente e incondicionada dos próprios. Numa sociedade de centenários que se adivinha é razoável que se tome como normal e humano a preocupação de cada um decidir quando e como deixará de querer prosseguir, por razões de vida, a vida. E não a prosseguir apenas por razões mortas.[3]
Bato-me por afirmar que a curadoria é um processo de comunicação da arte contemporânea e bato-me para que a curadoria tenha, como propósito, que a Arte no nosso tempo seja o mote para que possamos pensar, debater, refletir sobre as pequenas e grandes questões destes dias todos em que tendemos a sentir que vivemos num pântano e que nós, privilegiados, temos a obrigação e a responsabilidade de mudar o mundo. A Arte pode mudar o mundo.
Em A OUTRA MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS queremos refletir sobre o que significa ser velho. Sobre quais os quotidianos da velhice em pleno século XXI. Eutanásia: sim ou não e em que circunstâncias? Talvez tenha Valter Hugo Mãe, escritor que dispensa apresentações, antecipado uma realidade para a qual parece termos despertado em plena pandemia: para quem é velho, sê-lo significa, em muitos casos, ser um fardo; para quem não é, também. Mas será este o ponto de encontro único entre as diferentes gerações?
A intensidade e a genialidade do romance “a máquina de fazer espanhóis” questiona-nos sobre este desfasamento geracional e sobre a forma como a palavra abandono passou a fazer parte do fim de vida de quem dedicou a sua aos outros e é possuidor de conhecimento que nem sempre vem nos livros ou se encontra no Google. Em 2021, o livro mereceu uma reedição e o nosso artista visual Juan Domingues foi convidado para produzir um conjunto de obras cuja reprodução ilustraria a reedição.
Juan Domingues é, em minha opinião, um dos mais notáveis pintores da sua geração. Sim, porque no caso de Juan Domingues, falamos, fundamentalmente, de pintura, num exercício de homenagem aos grandes mestres da expressão e da emoção barroca, dos valores românticos, da novidade realista, aos quais junta o corpo, o gesto e o movimento de uma atitude performativa de pintar, que herda do expressionismo abstrato americano, do arranque da segunda metade do século XX. Para Juan Domingues, a pintura é a ação do corpo com a matéria pictórica, a partir da observação nua e visceral do mundo que nos rodeia.
Através da obra de Juan Domingues recordo a action painting de Willem de Kooning (1904-1997) ou a absoluta liberdade da paleta e do gesto de Gerhard Richter (n.1932), mas também revejo o intempestivo barroco de Peter Paul Rubens (1577-1649) e a ousadia de Gustave Courbet (1819-1877). Willem de Kooning, aliás, na sua passagem pelo Black Mountain College[4], experimentou a performance, propondo um exercício de cenografia que era, em si mesmo, uma extensão do seu próprio corpo.
Sobretudo, há em Juan Domingues uma pintura sem tempo e sem lugar, próxima de todos e de cada um de nós. A pintura de Juan Domingues ocupa, assim, o espaço do gesto e da liberdade, numa expressão fervorosa da cor que se expande pelos suportes através de uma atitude performativa ambiciosa. A perfeição da sua mimesis é catalisadora de um tecido emocional e sensível, à flor da pele e nas entranhas, que nos faz viver as estórias destas personagens, representativas do presente e do futuro de cada um de nós.
O conjunto de trabalhos que se apresentam em A OUTRA MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS impressiona-nos a rudeza e a sensibilidade que coloca em tudo, a teimosia pela escolha das cenas mais difíceis de ler e, quem sabe, narrar. Não ficamos indiferentes com esta mistura de fé e desalento nas expressões dos representados, com a ausência e presença de vontade de viver que se sente em cada rosto. Esta exposição é, por isso, sobre a vida e sobre a morte.
Na comparação com as ilustrações do livro, nas obras originais e de maior porte, Juan Domingues mantém-se fiel à cor e à força da novidade do contorno que ora se esconde, ora se revela. Convida-nos a parar, mas também nos perdoa se a imagem nos perturbar, parecendo-nos que as personagens nos questionam e nos culpam. Em bom tom da verdade, na relação com os mais velhos, com a velhice, todos nós temos culpa, todos somos ou fomos negligentes em dado momento da nossa vida.
Juan Domingues nasceu em Puerto Cabello, na Venezuela. Ainda criança veio para Portugal, tendo-se fixado, até aos dias de hoje, em Cantanhede, distrito de Coimbra. É Licenciado em Pintura pela Escola Universitária das Artes de Coimbra (ARCA-EUAC). Tem exposto, individual e coletivamente e tem visto o reconhecimento da sua obra em prémios como o Aveiro Jovem Criador, o Prémio D. Fernando II em Sintra, entre outros. O seu percurso já mereceu destaque pela Artreview Magazine e pela Showcase London. Está representado em diversas coleções públicas e privadas, em Portugal e além-fronteiras, destacando-se, por exemplo, a Drawing Dreams Foundation de Berkley, na Califórnia (EUA).
Juan Domingues começou a trabalhar com a zet gallery e comigo logo em 2017, no meu primeiro ano por cá. Ao longo deste período fomos privando e colaborando em diferentes projetos, tendo sido connosco que realizou as suas primeiras obras de arte em espaço público. Escrevi, sobre o seu trabalho, diversas vezes e fui sempre uma fã atenta dos instintivos atos performativos que estão na base da sua pintura.
Há meses que o Juan Domingues me falou de um projeto com o Valter Hugo Mãe, escritor que admiro. E, um dia, contou-me tudo sobre a reedição do romance maior, “a máquina de fazer espanhóis”, publicado pela primeira vez em 2010 pela Porto Editora, e sobre como estava entusiasmado com a possibilidade de comunicar com as palavras, tornando em imagens uma história que, de repente, com esta tenebrosa pandemia, se tornou rotina: as condições de vida dos mais velhos, o sentimento de abandono que faz parte do quotidiano de muitos e as consequências que tudo isto acarreta para cada um e o que diz de nós enquanto sociedade, enquanto comunidade, enquanto coletivo.
A zet gallery, integrando a grande família que é o dstgroup, gosta de ter a ambição de ser a espinha dorsal do que se preconiza no grupo e de promover os valores humanistas e formas de conhecimento holísticas e metadisciplinares. Neste sentido, pensar o mundo a partir de uma exposição em que a obra de arte se inspira numa obra literária, pareceu-nos perfeito para os nossos intentos. Entusiasmamo-nos com o Juan Domingues e quisemos que nos pertencesse o primeiro tempo e espaço de apresentação deste projeto.
Por isso, em A OUTRA MÁQUINA DE FAZER ESPANHÓIS, a zet gallery apresenta, em registo inédito, as obras de arte originais que Juan Domingues produziu para a reedição deste livro, cuja atualidade e pertinência se revelam em cada instante. Dezenas de trabalhos, entre desenhos e pinturas, num equilíbrio entre o preto e branco e a cor, numa diversidade de formatos e, inclusive, um trabalho site specific que o artista desenvolveu em contexto de residência artística na semana que antecedeu à inauguração de 29 de janeiro de 2022. A narrativa expográfica desenvolve-se, de forma livre, a partir do romance de Valter Hugo Mãe que também convidamos para apresentar, neste contexto, obra plástica da sua autoria.
Ao longo do período de vigência da exposição (até 16 de abril de 2022) vamos pôr o dedo na ferida e organizar mais um ÁGORA DE CÁ sobre como é ser velho hoje. Falaremos de eutanásia. Haverá OPEN DAY com visitas orientadas à exposição. E haverá, sobretudo, uma vontade imensa de continuarmos a mudar o mundo a partir daqui, acreditando que cabe às estruturas de criação e programação serem agentes da mudança, promovendo outras práticas, para lá do pântano emocional que assola a pólis.
À medida que os museus respondem a questões que afetam as suas comunidades, tanto localmente como globalmente, há uma clara mudança no sentido de se concentrarem na ligação humana, emoção e experiência, bem como no papel que os museus desempenharão como catalisadores do isolamento social, e da autossegregarão. Com a empatia partilhada, os indivíduos podem passar do isolamento para a pertença, da divisão para a conexão, da coesa e diversa que valoriza e dá oportunidade a todos os seus residentes.[5]
Helena Mendes Pereira
[1] DIDION, Joan – O Ano do Pensamento Mágico – a peça (2007). Porto: Teatro Nacional D. Maria II/Bicho do Mato, 2009. Página 28.
[2] D’ORS, Pablo – A Biografia do Silêncio. Breve ensaio sobre meditação. Pior Velho: Paulinas, 2020 (5ª edição). Página 95.
[3] BARATA, André – E se parássemos de sobreviver? Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo. Lisboa: Documenta/Sistema Solar, 2018. Página 99.
[4] GOLBERG, RoseLee – A Arte da Performance. Do Futurismo ao Presente. Lisboa: Orfeu Negro para Portugal, 2012. Página 156.
[5] MURAWSKI, Mike – Museums as agentes of change. A Guide for Becoming a CHangemaker. London: Rowman & Littlefield, 2021. Página 8.