Helena Mendes Pereira em conversa com João Penalva

Parte II

HMP: João, nesta exposição na zet gallery selecionamos um conjunto de obras de arte correspondentes a diferentes séries. A enumeração das diferentes séries (cadeiras, mantas, automóveis, flores, sapatos, tecidos, retretes, passeios, urinóis) acabou por se tornar no título da exposição. Gostava que nos falasse sobre cada uma das séries, relacionando-as entre si, sempre que essa situação se verificar.

(continuação)

Apesar de eu lhe ter falado até agora sobretudo sobre fotografia, acabo sempre por lhe falar também em pintura, o que é de esperar de quem foi pintor durante muitos anos. Uns vinte anos. Falo-lhe de fotografia que se parece com pintura porque, na forma como eu manipulo as imagens, vejo sempre a minha experiência de pintor.

As imagens da série Crashed, começada em 2015, e em que continuo a trabalhar, são feitas a partir de fotografias de automóveis acidentados que procuro e compro na internet. São impressões fotográficas dos anos 1950 aos anos 1980, muitas delas de arquivos de jornais e revistas. Estas impressões são digitalizadas, trabalhadas, e impressas em FujiFlex, um papel de impressão cromogénica que escolhi por ser altamente brilhante. Não tenho outros trabalhos em papel brilhante, mas aqui pareceu-me necessário dar a estas imagens um suporte muito presente como material. O que mostro são pormenores de relações de partes de metal. A redução da paleta a duas cores — o preto e um cor-de-rosa salmonado, aproxima-as de uma linguagem gráfica de publicação de moda, de objectos caros que, espero, lhes impeça qualquer tendência descritiva. O que não impedirá o espectador de o fazer, claro.

Temos duas imagens de flores na exposição, uma de 2008, outra de 2017. São ambas impressões digitais em papel mate. Either a face or udders (Ou uma cara ou úberes), de 2008, é a única peça com texto em toda a exposição, mas são muitos os meus trabalhos com texto. Aqui eu atento-me num pormenor do vaso do arranjo floral e do que ele pode sugerir, com uma narrativa trivial mas que me permite deixar entrar questões de percepção, não só do que esse vaso pode fazer lembrar, mas também como se olha para uma imagem de pernas para o ar e em negativo. 

Large Hiroshima Weed (Solarised Blue), de 2017, tem a sua origem numa série de fotogramas de pequeno formato que fiz em 1997, de ervas daninhas recolhidas em Hiroshima em 1996, por um botânico, o Sr. Watanabe, que as secou e identificou para o meu trabalho Addressing the Weeds in Hiroshima (Conversando com as ervas daninhas em Hiroshima), de 1997. Esta imagem foi impressa digitalmente a partir do ficheiro da digitalização de um deles, numa escala que transforma uma pequena planta numa forma entre o caligráfico e o espacial. A solorisação inicial, feita na câmara escura, foi aqui feita digitalmente, em cores que em nada se parecem às da natureza. É, portanto, uma fabricação. Ou uma efabulação?

A imagem da sapataria, Display (Shoes), de 2014, tem origem numa fotografia encontrada num mercado de velharias em Berlin, em 2004. É uma fotografia de amador, a preto e branco, de pequeno formato, sem data, sem nada escrito nas costas que lhe revele uma história. Será talvez dos anos 1950, da Alemanha Ocidental. Além das estruturas de metal e vidro dos mostradores, das transparências, dos tules decorativos, e dos sapatos com as formas brilhantes que sugerem um pé, o que mais me interessa é a presença incôngrua de um pequeno relógio. Sabemos apenas a que horas a fotografia foi tirada, e essa informação parece-me o princípio, ou o fim, de uma narrativa. Tecnicamente, a imagem combina áreas em positivo e outras em negativo, como uma imagem revelada apenas parcialmente, selectivamente.

Além das mantas Kantha, temos outras duas peças com tecidos. Uma, Sack Picture (no.1), de 2017, é tecnicamente idêntica às imagens dos khanta uma fotografia digital de resolução muito alta, impressa com tintas curadas por raios ultra violeta. Mas enquanto os kantha foram fotografados sem nenhuma modificação, estes sacos de serapilheira foram primeiro transformados numa colagem, feita numa linguagem visual que eu quis que não fosse de hoje mas do tempo destes sacos — os anos 1930. Poderia ter emoldurado a colagem mas preferi a sua versão fotográfica, que, de algum modo, a mitifica. A sua data torna-se ainda mais incerta. E a resolução da imagem é tal que, sem ter sido minha intenção, se tornou num trompe-l’oeil. Os sacos são da Sociedade Agrícola W. J. Turner, de Wymondham, Norfolk, no Reino Unido, que ainda existe, e produz batatas, beterrabas e rutabagas.

Macpherson — pormenor de impressão a talhe-doce, de 1833, de A. Fullarton & Co, Edimburgo e Londres, de um tartan concebido em 1819 por Wilsons of Bannockburn, digitalizado e ampliado 3175 %, e impresso digitalmente em 2020, de 2020, é o título deste trabalho em três partes. É também o texto impresso num dos painéis, como se tratasse de uma legenda. A impressão a talhe doce fez parte de um album de amostras dos padrões dos tartans dos vários clãs escoceses, de que encontrei apenas algumas páginas. A imagem maior, a ampliação da página do album, torna-se, através da sua escala, num objecto que, à primeira vista, terá muito mais a ver com o que conhecemos do modernismo, e particularmente com a pintura moderna, do que com o design têxtil de 1833. Mas a grelha não nasceu com o Modernismo, ela vem de muito longe, do tear, da trama, que tem milénios de história. Este trabalho reúne dois processos de impressão, um clássico, outro o mais avançado nos nossos dias.

Pergunto-me muitas vezes por que será que as cadeiras são objectos a que volto sempre. Será porque, apesar de todas terem um assento, costas, quatro pernas, e, algumas, braços, qualquer diferença no seu desenho lhes dá uma dinâmica diferente? Será porque, nas suas proporções, está implicitamente contido o corpo? As duas peças com cadeiras na exposição são bem diferentes em termos de composição. As Cadeiras de camarim em mau estado, de meados do século XX, à espera de serem retiradas de um teatro, em frente às que as substituirão, numa parede oposta, de 2020, são exactamente o que o título diz. É uma fotografia que não faz parte de uma série.

Arlequim de perfil, de 2019, faz parte de uma série de imagens de várias pilhas de cadeiras, todas elas com o título Pilha de 5 cadeiras (Frente) e Pilha de 5 cadeiras (Verso), mas esta distingue-se das outras pela cadeira no topo, que é vista de lado. Separei-a da série não só pelo título — Arlequim de perfil, um grande contraste com o directo, objectivo, Pilha de cadeiras — mas também na forma como a imagem foi trabalhada digitalmente e emoldurada com um enorme passe-partout que as que as outras não tiveram.

Estas cadeiras já foram protagonistas de um livro de artista que fiz em 2008, em que relato como as encontrei em Trieste, em 1983, o que não teria acontecido se o meus amigos Armando e Mary Borgatta não tivessem tido um bébé, e o Armando não andasse pelas lojas de artigos em segunda mão à procura de um carrinho. Foi assim que ele as encontrou e me disse para ir vê-las.

As imagens das peças com os sanitários, como lhe disse quando falei dos títulos dos trabalhos, foram tiradas do catálogo 72 da companhia de materiais de construção Nicholls & Clarke Limited, de Londres. É uma publicação muito cuidada, muito bem desenhada e impressa. Tem 22,3 cm de altura por 14,2 cm de largura, e uma lombada de 4,3 cm. A capa dura é de um linho preto muito fino, tratado como se fosse encerado, e com impressão litográfica; o texto impresso a branco, e quatro desenhos de linha, meticulosamente impressos num azulclaro, cada um deles inserido num quadrado de 6×6 cm, delineado em baixo-relevo.

Os desenhos mostram um lavatório e torneira, uma banheira, um lava-louças de cozinha com armário, e uma lata de tinta e uma trincha. Na contracapa, as imagens, também dentro dos baixo-relevos, são de secções de canos, um sifão, e uma janela. Portanto, não é o que se imagina como o catálogo de uma firma de materiais de construção. Curiosamente, este livro não tem data, e esse facto faz que tudo nele fique num limbo. Em que ano estamos? O design das louças que escolhi é simultaneamente funcional e decorativo, mas o elemento decorativo parece ser muito anterior à sua data, que será, provavelmente, o começo dos anos 1960, mas pode ser ainda dos anos 1950. São clássicas, pesadas, à excepção do armário de espelho que é resolutamente moderno, simples, com charneiras duplas, articuladas.

Interessou-me juntar todos estes elementos e usá-los para construir um espaço arquitectónico exterior à moldura maior, com a sua imagem do objecto num espaço de interior; um espaço de parede vazio, definido pela moldura da legenda que o identifica no catálogo da Nicholls & Clarke Limited.

HMP: Qual considera ter sido, no seu percurso artístico, o momento determinante para a sua afirmação?

JP: Diria que houve vários momentos. O primeiro foi no Porto, em 1991, com a exposição Coincidências, na Alfândega do Porto, comissariada por João Fernandes. As instalações Café e Arquivos, ambas de enormes dimensões, eram os meus primeiros trabalhos de instalação, empurrado a fazê-las pelo João Fernandes, quando eu tinha sido exclusivamente pintor até então. Depois, a Bienal de São Paulo, em 1996, com uma peça complexa, em dois espaços, Viúva Simone (Entr’acte, 20 anos), foi a minha primeira grande exposição a um público internacional.

A exposição no CCB, em 1999, a convite de Pedro Lapa, foi também muito importante porque tive um orçamento de produção que me permitiu fazer uma exposição muito grande e que, à excepção do trabalho que tinha mostrado na Bienal de São Paulo, incluía apenas trabalhos novos. Esta exposição coincidiu com um encontro do IKT (Associação Internacional de Curadores de Arte Contemporânea) em Lisboa, o que expôs o meu trabalho a um grupo de curadores internacionais, com alguns dos quais viria a trabalhar anos mais tarde.

Em 2000, no Camden Arts Centre, em Londres, com a instalação do meu filme 336 PEK (366 Rios), de 1999, tive outra oportunidade muito importante, na cidade onde estudei, vivi, e realizei a minha vida de artista. Claro que o Pavilhão de Portugal na Bienal de Veneza, em 2001, um convite do IAC, então dirigido por Isabel Carlos, de novo com o curador Pedro Lapa, ofereceu-me o público mais vasto, do mais geral ao mais especializado, nas artes contemporâneas, e a maior visibilidade mediática, mas cheguei a Veneza com um historial de exposições que contribuíram para a boa recepção do meu trabalho.

HMP: O que sente que o distingue, enquanto artista, dos seus pares?

JP: Há muito poucos artistas visuais com um passado profissional na dança. Sei de apenas um, e um artista cujo trabalho muito admiro — Daniel Spoerri. Essa experiência continua muito presente na forma intuitiva como resolvo problemas relacionados com os espaços expositivos — como se os percebesse de uma forma física, mais do que lógica. No entanto, não foi apenas a experiência profissional na dança em si o que me marcou, mas também o contexto intelectual em que a dança que me interessava se desenvolvia então: as ideias de John Cage e Merce Cunningham sobre tempo e espaço, composição e acaso, e em geral, numa relação amorosa com todo o tecido do quotidiano.

HMP: Neste tempo da hiper-produtividade em que vivemos, sente a pressão do tempo, a pressão do simplesmente fazer e estar? Qual é o segredo para continuar, como me parece virtude sua, a criar nos dias de vagares do pensamento?

JP: Pressão? — Nenhuma. O meu trabalho é sempre um prazer e, como lhe disse, estou sempre muito bem acompanhado. Difícil é ouvir os saltos altos da minha vizinha de cima.

Esta entrevista foi realizada por escrito entre Outubro e Novembro de 2022. João Penalva não escreve nos termos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. 

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