Sobre uma enumeração de artigos para venda de João Penalva

Emilio Lledó diz-nos que “no princípio foi a palavra”[1] e desde o princípio que os filósofos intuíram que o caminho para o conhecimento passava por nos encarregarmos das palavras. A maioria dos Diálogos de Platão consistem em discussões em torno de palavras, conceitos que utilizamos sem pensar qual é o seu verdadeiro significado. “Sócrates dedica-se, repetidas vezes, a questionar esses usos linguísticos não analisados, que costumam encerrar contradições.”[2]

O título desta exposição individual de João Penalva (PT, 1949) é uma lista de palavras, uma enumeração de artigos que poderia tratar-se de um anúncio de lojista de variedades. Neste caso, teria o filósofo pouco espaço para indagações, considerando que as palavras têm uma correspondência mimética com os objetos identificáveis em cada uma das obras apresentadas. E, para João Penalva, no princípio era a dança e este facto histórico será uma das peculiaridades da sua biografia. Terá sido, inclusive, o palco, como primeiro lugar de encontro e descoberta com o corpo, com o espaço e com a estética, o elemento-chave para a forma como o artista olha, interpela e fixa o mundo em seu redor.

É inevitável, para mim, experienciar as obras das séries flores, sapatos ou cadeiras, patentes nesta exposição na zet gallery, e não sentir o movimento e o ritmo do corpo ausente e o gesto fazedor da imagem.

Entre 1968 e 1976, João Penalva desenvolveu a sua atividade artística na área da dança, a estudar entre Paris, Lisboa e Londres. Nestes oito anos, integrou as companhias dos alemães Pina Bausch (1940-2009) e Gerhard Bohner (1936-1992) e constituiu com Jean Pomares em Copenhaga em 1975, a The Moon Dance Company. Fixa-se em Londres, a partir de 1976, começando um caminho nas artes plásticas e visuais, após a sua admissão na reputada Chelsea School of Art. A década de 1980 é marcada por exposições no Reino Unido e em Portugal.

João Penalva adota, desde estes primeiros tempos, uma postura alinhada com a politização “da forma e não apenas do conteúdo das suas obras, da técnica e não do tema”[3]. Esta importância dada ao processo e a uma liberdade criativa que valoriza o quotidiano, alinha-se com o pensamento de John Cage (EUA, 1912-1992) e de Merce Cunningham (EUA, 1919-2009), artistas que se conheceram na Dance Company e se viriam a tornar inseparáveis. Cage partiu da música e Cunningham da dança, mas o que representam em termos de pensamento para as práticas artísticas contemporâneas está para lá das disciplinas. As vanguardas são marcadas pelo ativismo e as discussões das últimas décadas sobre arte têm sido pautadas, ciclicamente, pela questão do ativismo da arte, ou seja, “a capacidade de a arte funcionar como arena e meio de protesto político e de ativismo social.

Os ativistas da arte não querem apenas criticar o sistema da arte ou as condições políticas e sociais em que funciona. Também querem mudar estas condições por meio da arte – não tanto no interior do sistema artístico, mas mais por fora dele, ou seja, mudar as condições da própria realidade.”[4]

John Cage e o movimento Fluxus terão sido os precursores desse ativismo e, Cage encara a sua obra com uma seriedade que vem enraizada nas aprendizagens que faz ao contemplar a Natureza, que se mostra despida de solenidade. Cage abraça “uma preocupação filosófica que permite que a arte dos sons se manifeste sem barreiras, deambulando em harmonioso diálogo com todas as artes.

É o próprio Cage quem nos diz, sendo um apreciador de todos os sons, que o riso lhe parece o mais agradável de todos; contudo, já em 1937 dizia que um dia todos os sons audíveis viriam a fazer parte da música.”[5] Cage é um dos criadores da Música Nova, que designa como um modo de escutar, sendo o objetivo de escrever música, não trabalhar em torno de propósitos mas com sons. “Este jogo é, sem dúvida, uma afirmação vital. Não uma tentativa de extrair ordem ao caos nem de sugerir melhoras na criação, mas, sensivelmente, um modo de se despertar para a verdadeira vida em que vivemos: ARTE = VIDA.”[6]

A obra de João Penalva interessa-nos, desde logo, pelo olhar sensível aos objetos do quotidiano, a lugares-comuns onde, entre imagem e espectador, apenas existe um interstício poético, por vezes profano, mas de apelo contemplativo e lento. As obras de João Penalva são detalhes da vida, pedaços dos dias.

Em cadeiras, mantas, automóveis, flores, sapatos, tecidos, retretes, passeios, urinóis e outros artigos para venda de João Penalva, o artista traz, a Braga, mais de duas dezenas de obras, produzidas entre 2006 e 2022, em que convoca os meios da fotografia e da pintura para apresentar o seu olhar, demorado e de apelo à imaginação, sobre “coisas do dia a dia, muito comuns” que nunca pensa como banais, como nos diz na entrevista que realizamos ao longo das semanas de preparação desta exposição.

A bidimensionalidade da seleção, e uma certa prevalência na imagem que se conclui digitalmente, marcam as obras escolhidas, como se de uma síntese de interesses se tratasse. Os passeios são, talvez, marca de uma biografia além-fronteiras e dessa atenção que é característica do autor, num efeito de paz transeunte que contrasta com o trauma sugerido em automóveis.  Por sua vez, retretes e urinóis refletem a importância do texto na obra do autor, que, sem ironia, revela a apreciação estética que faz de lugares inusitados como um catálogo de produtos para a construção civil.

João Penalva atravessa a década de 1980 com uma pintura de “forte sugestão figurativa e densa de matéria ou festiva de cores”[7]. As obras enquadradas nos capítulos mantas e tecidos herdaram essa densidade, enquanto carregam a dimensão afetiva da viagem e do encontro com a cultura do outro, com a sua forma de afago. Plasticamente, cores, texturas e padrões são constantes ao longo de mais de quatro décadas de produção. Na década de 1990, o seu trabalho adquire a condição site specific e as instalações que desenvolve ocupam e transfiguram o espaço, sentindo-se a dimensão meta disciplinar da sua prática e uma investigação, que se mantém até hoje, e que tem nos conceitos de arquivo e memória a sua base. O vídeo é outros dos seus tempos e espaços de atuação, com o contraste entre as narrativas mais lineares e as codificadas como tónica.

A diversidade de processos e de meios que marcam o caminho de João Penalva e a consistência das ideias, mereceram um reconhecimento nacional e internacional indelével. João Penalva não se inscreve em estilos ou escolas. Criou um ritmo e uma dimensão imagética próprias que o acompanham na pintura, na instalação, no vídeo, na fotografia e que, provavelmente, herdou nas aprendizagens da dança e do corpo. Como escreveu Byung-Chul Han (n.1959): “Correr não é uma forma nova de andar. Trata-se, simplesmente, de um andar acelerado. Talvez a dança ou o baloiçar o corpo sejam, eles sim, movimentos completamente diferentes. Só o ser humano é capaz de dançar.”[8]

Não podemos afirmar que o conjunto de obras agora apresentado é apenas uma síntese das fases e dos ritmos de uma história. Contudo, há em toda a obra de João Penalva e, mais uma vez voltamos à dimensão de elogia à Natureza que John Cage exacerba, um desafio de pararmos para a contemplação e contrariarmos o ritmo acelerado dos dias. A listagem de lojista, patente na enumeração do título, que poderíamos ver como ironia ou crítica subtil à sociedade do consumo, talvez tenha mesmo o tal contraste que lhe é visceral e que nos atinge.

Voltando ao filósofo sul-coreano, interessa dizer “a vida cultural da humanidade, na qual se inclui também a atividade filosófica, só é possível e só desenvolve quando existe uma atenção profunda e contemplativa. A cultura pressupõe um espaço propiciador de atenção profunda. A atenção profunda tem vindo a ser cada vez mais suplantada por um tipo de atenção completamente diferente – a hiperatenção (hyperattetion). Esta atenção dispersa ou distraída é caracterizada pela mudança brusca do foco da questão, pela alternância constante de tarefas, de fontes de informação e processos.”[9] A obra de João Penalva é um convite à curiosidade e à atenção profunda e contemplativa e essa é, também, a sua forma transversal de ser ativista.

A obra de João Penalva não nos interessa, por isso, apenas pelo currículo do artista onde se inclui, entre tantos outros palmarés, a representação oficial portuguesa na Bienal de Veneza de 2001. Interessa-nos porque, em décadas de produção, este é um artista que não parou de se reinventar, mantendo-se fiel a princípios éticos e valores estéticos. E, interessa-nos, sobretudo, porque não nos permite ficar indiferentes a pensar o indizível e o indireto da imagem, porque contém a tal “Filosofia do Martelo”, de que fala Nietzsche (1844-1900) e que se destina a “martelar” os ídolos, ou seja, todo o tipo de modelo mental que escraviza a vida. Nietzsche martela as certezas. Por isso a filosofia de Nietzsche é uma filosofia de desconstrução, que tenta mostrar que não existem verdades absolutas.

A obra de João Penalva é verdade e é por ser essa verdade que se inscreve na História da Arte Contemporânea. Mas faz parte daquele grupo de verdades que elogiam as dúvidas e que não nos permitem viver sem a inquietação de continuar a questionar, a transformar, a mudar o mundo.

cadeiras, mantas, automóveis, flores, sapatos, tecidos, retretes, passeios, urinóis e outros artigos para venda de João Penalva para ver, de 26 de novembro de 2022 a 25 de fevereiro de 2023, na zet gallery, em Braga.

Helena Mendes Pereira

[1] LLEDÓ, Emílio – Fidelidad a Grecia. Valladolid: Cuatro editiones, 2015.

[2] CAMPS, Victoria – Elogio da Dúvida. Lisboa: Edições 70, 2021. Página 139.

[3] MELO, Alexandre – Arte e Artistas em Portugal. Lisboa: Instituto Camões, 2007. Página 93.

[4] GROYS, Boris – arte em fluxo. Lisboa: Orpheu Negro, 2022. Página 55.

[5] BARROS, António – John Cage, Música Fluxus e outros gestos da música aleatória em Jorge Lima Barreto. Coimbra: António Barros / Alma Azul, 2013. Página 26.

[6] BARROS, António – John Cage, Música Fluxus e outros gestos da música aleatória em Jorge Lima Barreto. Coimbra: António Barros / Alma Azul, 2013. Página 27.

[7] ALMEIDA, Bernardo Pinto de – Arte Portuguesa no Século XX. Uma História Crítica. Porto: Coral Books, 2016. Página 383.

[8] HAN, Buung-Chul – A Sociedade do Cansaço. Lisboa: Relógio d’Água, 2014. Página 27.

[9] HAN, Buung-Chul – A Sociedade do Cansaço. Lisboa: Relógio d’Água, 2014. Página 26.

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