Helena Mendes Pereira em conversa com João Penalva

Parte I

 

Helena Mendes Pereira (HMP): A produção artística contemporânea enquadra-se nos processogeracionais de que sempre viveu a História da Arte ou é “trans histórica” (se assim se pode dizer), ou seja, afirmada de processos autorais não relacionáveis entre si?

João Penalva (JP): A produção artística contemporânea é mais variada do que a de qualquer outro tempo. Vemos as influências, as citações, as combinações das linguagens mais diversas no trabalho de artistas que hoje têm um acesso imediato a toda a História de Arte e que, conscientemente ou não, usam ela informação como um banco de conhecimento. A disseminação de imagens de obras de arte é hoje uma indústria, a informação chega-nos muito depressa e perfeitamente produzida, e tanto pode referir-se a um objecto com 400 anos, oriundo da Flandres, como a uma exposição no Museu de Arte Moderna e Contemporânea de Seul, inaugurada ontem.

A produção artística sempre evoluiu das experiências acumuladas no seu passado; é impossível pensar no Cubismo sem ter Cézanne como seu antecessor, ou ver os espaços criados pelos fios de Fred Sandback já nos anos 2000, sem pensar no Minimalismo de Donald Judd, ou de pensar em Judd sem pensar no Quadrado Negro de Malevich, de 1915. Mas também que nesse mesmo ano Picasso pintava ainda arlequins cubistas, que eram considerados a avante-guarde. Portanto, quantos movimentos vanguardistas simultâneos podemos ter?

HMP: Na arte das coisas concretas, há abstração no olhar do artista? O que o deslumbra: o acaso do que regista, do que vê, ou o exato que lhe sugere formas?

JP: É um mecanismo instintivo, mas treinado por muitos anos de estudo e de trabalho. Logo nos primeiros momentos do meu encontro com um objecto no qual reconheço potencial para se tornar num material para o meu trabalho, vejo-o como uma imagem — a imagem fotográfica da sua imagem no mundo — antecipo as possibilidades do seu enquadramento, e esse enquadramento é já parte da narrativa que irei construir em torno dele.

Mas, para além de todos os aspectos formais, há também o processo de interpretação do objecto, processo esse que é completamente subjectivo e inseparável das minhas referências culturais. Um bloco de madeira lacada ou de cerâmica vidrada, com uns 20 cm de largura por 10 de altura e 10 de profundidade será imediatamente reconhecido por um japonês como uma almofada, mas o conceito europeu de almofada corresponde a algo muito maior e mais macio. Será por isso que os objectos que mais me fascinam são aqueles em que eu tenho de me perguntar O que é isto? Para que serve?”. Eu tenho de entender o objecto como quem entende uma personagem, porque é como personagens que esses objectos se movem no guião que lhes invento.

HMP: E as suas obras, o seu culto das imagens, entende que têm eco em outros autores do seu tempo ou que bebe de influências?

JP: A única definição de arte que me convence é que a arte é o que os artistas fazem. E, para mim, ninguém descreveu melhor do que John Cage como nenhum de nós trabalha numa bolha: “Quando se começa a trabalhar, tudo está no estúdio — o passado, os amigos, os inimigos, o mundo da arte e, acima de tudo, as nossas próprias ideias — está lá tudo. Mas, à medida que se continua a pintar, começam a partir, um a um, e fica-se completamente sozinho. Depois, com sorte, até nós próprios saímos.” No meu caso, também lá está tudo quando começo. Também lá estão todos. Só que os meus nunca arredam pé. A sua influência é constante, e são uma companhia amiga que eu gostaria de nunca perder.

HMP: Quais os limites da criação artística contemporânea? Considera que existem estes limites ou tudo é passível de ser considerado Arte? Penso, por exemplo, nesta questão dos NFT.

JP: Esses limites foram sempre expandidos pelos artistas. Se tudo pode ser considerado arte? A minha convicção é que são os artistas quem define o que é arte, pelo facto de serem eles quem a faz, e a não ser no trabalho dos artistas a arte não é uma coisa que paire no ar.

Os NFT são um exemplo curioso do conceito de propriedade mas não me parece que estejam verdadeiramente a expandir os limites da criação artística.

HMP: Entende que o trabalho fala por si próprio nessa pequena aversão aos títulos?

JP: As obras falariam por si próprias mesmo se eu lhes desse o título de Sem título — o que é um maneirismo que substitui um título que não se quer dar, mas que não deixa de ser um título. No entanto, não sei o que diriam. Ao acrescentar um título “trabalhado”, um título composto com uma intenção, posso influenciar a forma como o trabalho é visto. No momento da leitura desse texto que é o título, inicia-se um diálogo entre o trabalho e os seus públicos, recorrendo eu a uma linguagem acessível a toda a gente: estou a usar palavras que eu e esses públicos temos em comum.

Os trabalhos desta exposição mostram um espectro de possibilidades muito variadas do que o título pode ser, mas uso muitas mais. Posso intitular algumas cadeiras empilhadas Cadeiras de camarim em mau estado, de meados do século XX, à espera de serem retiradas de um teatro, em frente às que as substituirão, numa parede oposta, e o título contém uma história completa.

Mas posso também intitular outra pilha de cadeiras Arlequim de perfil, e a narrativa é substituída por um aceno à história da arte, porque vi o ritmo e as cores do Cubismo nessa pilha, vi todos os Arlequins de Picasso, e esta foi a minha forma de transmitir essa visão ao espectador. Se algo se chama Arlequim de perfil, procura-se nela o Arlequim, e se se o encontra, ele estará de perfil — mas tudo graças à imaginação do espectador. Eu só começo o processo.

Posso também intitular uma série de imagens de passeios de Londres, com o código postal dos edifícios ao longo dos mesmos. Estes códigos parecerão certamente crípticos e eu sirvo-me dessa resistência muito conscientemente porque eles têm também a particularidade de poder levar o espectador exactamente ao lugar onde a fotografia foi tirada — se o espectador tiver a curiosidade de querer saber onde estão estes passeios, colocando o código postal e a palavra Londres no Google Maps. Outros títulos como Crashed, ou Blanket Picture são muito directos: Crashed são imagens de carros acidentados, e os Blanket Pictures são imagens de mantas, ou cobertores.

As imagens de sanitários, com os títulos Solo, Trio, Fountain, Chain and Bowl, e Double Swivel Door Bathroom Cabinet, são exactamente os nomes por que estas peças são identificadas num catálogo da companhia britânica Nicholls & Clarke, de materiais de construçção. Por isso acrescentei aos títulos (after Nicholls & Clarke Ltd).

Os meus títulos fazem parte da construção conceptual do trabalho; são uma oportunidade de acrescentar com palavras qualquer coisa que só as palavras podem dizer e que, porque revelam tão claramente uma direcção em termos de linguagem, me revelam também a mim enquanto artista.

Portanto, a sua ideia de que eu tenho uma “pequena aversão aos títulos” é um pequeno mal-entendido que provavelmente surgiu quando, há tempos, me perguntou se eu já tinha um título para esta exposição e eu lhe respondi que raramente tenho títulos para as minhas exposições, excepto quando a exposição envolve uma personagem fictícia. Gosto sempre de ver o meu nome ao lado de outro, de alguém que não existe.

Quando eu lhe recitei a lista de imagens que fariam parte da exposição e a Helena a repetiu e me disse que ela poderia bem ser o título, eu concordei imediatamente, acrescentando o “para venda” porque essa lista me soou, e continua a soar, e muito bem, a linguagem de lojista.

HMP: No seguimento das possibilidades que nos abre sobre alguns títulos para as obras de arte desta exposição na zet gallery, na sua opinião, o que une o conjunto de trabalhos apresentados? Poderíamos falar de uma espécie de poesia do urbano observado em Liberdade ou há no grupo de objetos (e conjuntos de objetos) uma narrativa da nossa desatenção quotidiana?

JP: Os objectos que uso no meu trabalho são, em geral, coisas do dia a dia, muito comuns, mas nunca penso neles como banais. O meu trabalho é apresentá-los como coisas em que o olhar se pode demorar e dar asas à imaginação do espectador. Será isso que todos os trabalhos aqui expostos terão em comum. Não foi minha intenção criar uma narrativa com todos eles, mas não será difícil ao espectador criá-la, se o quiser. Deixo-lhe uma pista: pense em como o corpo está ausente destas imagens mas também que todas elas se lhe referem.

HMP: João, nesta exposição selecionamos um conjunto de obras de arte correspondentes a diferentes séries. A enumeração das diferentes séries (cadeiras, mantas, automóveis, flores, sapatos, tecidos, retretes, passeios, urinóis) acabou por se tornar no título da exposição. Gostava que nos falasse sobre cada uma das séries, relacionando-as entre si, sempre que essa situação se verificar.

JP: A série dos passeios de Londres, de 2014, é composta por imagens de pormenores de ruas que eu conheço de anos e anos, do meu bairro ou de ruas por onde ando frequentemente. Uma delas, com uma composição muito rica e delicada, é do passeio à porta do meu supermercado, o Waitrose de Edgware Road. Outra, na minha rua. Outras são no caminho para o estúdio que tinha nesse tempo em Bermondsey, no sul da cidade.

Quando comecei a fotografar estes passeios, a olhar para o chão como quem olha para pinturas, a maravilhar-me com estas manchas sabe-se lá de quê, com a distribuição aleatória das marcas arredondadas das pastilhas elásticas, as beatas de cigarros, decidi que só seria interessante reproduzi-las à escala real; que estas imagens fossem um documento exacto, mas que, pelo do tipo de impressão e de suporte, fugissem ao documento fotográfico. A impressão fotográfica digital teria tido uma qualidade de pormenor muito superior se as imagens tivessem sido impressas em papel ou tela preparados com a emulsão específica para impressão digital, mas eu preferi que a impressão fosse feita nas costas de linho preparado para pintura a óleo.

Houve uma questão técnica importante que me levou a esta escolha: a impressão digital com tintas de grande saturação de pigmentos é feita num rolo, e o papel ou a tela a serem impressos terão de ter uma certa rigidez para que não enruguem à passagem por esse rolo. Se enrugarem, podem partir as cabeças da impressão de jacto-tinta, que são frágeis. A base para a tinta a óleo no linho belga que escolhi dá ao linho, que é fino, o corpo necessário. Estas telas tiveram durante muito tempo o cheiro característico das pinturas a óleo — o cheiro do óleo de linhaça, o que acompanhou perfeitamente a minha ideia de ver estas imagens como pinturas a tinta da China. Por muito que se pareçam com pinturas são também o registo de um tempo numa grande cidade onde tudo se transforma rapidamente.

Passados poucos meses quase todos os passeios que tinha fotografado tinham mudado tanto que, apesar de eu estar no lugar certo, já não reconhecia a imagem na fotografia. Nalguns casos tinham desaparecido completamente porque as placas de que os passeios são feitos tinham sido substituídas.

Na série dos Blanket Pictures, de 2017, as mantas, que se chamam kantha no Bangladesh, são feitas de retalhos de saris, dhotis, lungis, e de outras roupas que já não servem para serem vestidas. As várias camadas de tecidos são cosidas umas às outras por um ponto regular, pequeno, no sentido da maior dimensão. É um trabalho feito exclusivamente por mulheres, e que pode demorar meses ou anos.

Os fios das orlas dos saris são removidos, guardados, e usados para bordar desenhos intrincados no lado nobre — porque elas têm um lado nobre, e o revés. É o avesso o que mais me interessa, e foi esse que fotografei. No avesso, os remendos são feitos sem nenhuma preocupação de serem subtis. Estão lá por necessidade, e as cores e os padrões desses remendos, em contraste com o fundo, dão-lhes o ritmo de uma composição que só o acaso desenharia.

Quando chamei Blanket Pictures a estes trabalhos quis que, na sua representação fotográfica, num desdobramento tão fiel quanto possível nas cores e dimensões, estas mantas continuassem a ser mantas mas também imagens ‘pictóricas’. Não traduzo o título porque picture é uma palavra difícil de traduzir em português. Apesar de ter a sua origem latina — pictūra, do acto de pintar, ou de uma pintura — não temos em português uma palavra que possa servir, ao mesmo tempo, uma representação visual ou mental, uma pintura, uma fotografia, um desenho, um filme, uma impressão, uma cena, uma situação.

Tal como na série dos passeios, a reprodução destas mantas é também feita nas suas dimensões reais, mas enquanto nos passeios a escala real enfatiza uma atitude documental, aqui, documental seria reproduzir estas mantas num pequeno formato, como num livro ou um catálogo de leiloeira. Na sua escala real, com uma margem branca e moldura, estas imagens tão coloridas tornam-se pictóricas no sentido de viverem duma composição dinâmica que os vários remendos lhes conferem.

(continuação)

Esta entrevista foi realizada por escrito entre Outubro e Novembro de 2022. João Penalva não escreve nos termos do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Comments

comments