A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS
Martinho Costa
Por Helena Mendes Pereira
No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às cinco e meia da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo. 1
Por estes dias, ao rever Gabriel García Márquez (1927-2014), abri na primeira página de Crónica de uma Morte Anunciada, livro que o escritor colombiano publicou em 1981, em que conta a história, através de uma reconstrução jornalística, do assassinato de Santiago Nasar pelos dois irmãos Vicario. Ao recuperar a história, num mesmo momento em que a pintura de Martinho Costa me invadia rotina, o presságio do personagem lembrou-me a analogia da morte da pintura, expressão artística cujo fim foi (e é) tantas vezes anunciado. Quando Martinho Costa cria, quando dá forma aos espaços e tempos da sua contemplação e experiência, é como se acordasse cedo, de madrugada, em absoluta resiliência, não permitindo a morte sempre anunciada da pintura.
Interessa, contudo, recuperar alguns momentos da História da Arte em que se fez este anúncio, compreendendo, também, a sua falência congénita. Hegel (1770-1831) afirmou, nos seus cursos de estética e num momento em que nasciam os modernismos e se fazia uma espécie de luto pela Anti- guidade Clássica, que “a arte é e ficará para nós, em relação ao seu mais alto destino, como coisa do passado”. O pintor Paul Delaroche (1797-1856), a propósito da invenção da fotografia, afirmava, no célebre Salon da Société des artistes français et Société nationale des beaux-arts, organizado por Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867), que “A partir de hoje, a pintura está morta!”.
Mais tarde, Malevitch (1879-1935) disse que a pintura e o pintor eram coisa do passado. Mondrian (1872-1944) argumentou que “a pintura, depois de ter determinado a sua essência, preparava o seu fim”. Nesta mesma linha, o russo Alexander Rodtchenko (1891-1956) acreditava ter vaticinado a morte da pintura: “Levei a pintura ao seu fim lógico e mostrei três pinturas: um Encarnado, um Azul e um Amarelo. Tudo está terminado. São estas as cores principais”. A frase foi proferida, em 1921, no contexto de uma exposição em que apresentou as suas três telas monocromáticas.
Poderíamos ainda referir os processos de desmaterialização e dessacralização do objeto artístico que marcam a produção artística a partir das vanguardas das décadas de 1960/70, como poderíamos recordar a Pop Art e outros momentos em que a pintura foi a expressão rainha. Como afirmava Nietzsche (1844-1900), a história da arte evolui segundo ciclos. E os ciclos sucedem-se sempre. E é por isso mas, sobretudo, porque artistas como Martinho Costa continuam a persistir e a ter a capacidade de reinventar a pintura que esta será sempre perene, eterna e, por isso, presente.
Neste sentido, não obstante o carater iminentemente multimédia, experimental e indagador do espaço que marca a exposição A COUPLE OF STRUCTURING AND LIQUID THINGS, o conjunto de trabalhos que Martinho Costa apresenta são sintomáticos da pós-modernidade líquida, numa paisagem de cruzamento entre a natureza e a ação humana. As suas cores vibrantes, numa ação mimética altamente expressionista, o artista convoca pequenos lugares de observação do quotidiano onde o Homem pontua de existência a suburbanidade, o eterno cruzamento, profundamente português, entre o tempo e o espaço da cidade com o desejo de afastamento do caos.
A obra de Martinho Costa é, diria, muito mais do que apenas representação: encontra-se numa espécie de “espaço intersticial”, identificado por “Alfredo Jaar (n.1956) (corroborado por Garcia Canclini) e por Shahzira Sikander para enquadrar obras de arte que se encontram entre/no limiar das culturas. Estas obras questionam/acrescentam, através da Pintura, uma nova perspetiva da História da Arte Ocidental, com autores identificados com culturas anteriormente excluídas da tradição plástica do ocidente.” 2
A pintura de Martinho Costa é, assim, um não-lugar e um lugar-comum da pós-modernidade líquida, híbrida, ao mesmo tempo que eleva a estética ao patamar de uma tempestade de estrelas.
Helena Mendes Pereira
[1] MÁRQUEZ, Gabriel Garcia – Crónica de uma morte anunciada (1981). Lisboa: Dom Quixote, 2014 (15ª edição). Página 9.
[2] CORDEIRO, Conceição – Tempos do “Cut and Paste”? Uma Leitura Híbrida da Pintura. In SABINO, Isabel (coordenação) – And Painting? A pintura contemporânea em questão. Lisboa: CIEBA-FBAUL, 2014. Página 71.
Saiba mais sobre o artista e o seu trabalho em https://zet.gallery/artist/martinho-costa-40891.