Rosa Montero (n.1951) escreveu que “A cultura é um palimpsesto e todos nós escrevemos sobre o que os outros já escreveram.”¹ Palimpsesto é, do grego antigo original, reescrever, raspar e escrever por cima, numa referência mais direta a um pergaminho ou papiro que, já entre os séculos VII e XII, era raspado com pedra-pomes para que fosse reaproveitado. Justificada pelo elevado custo do suporte, tal prática levou à perda de uma parte considerável de textos greco-romanos, ao mesmo tempo que inscrevia na matéria natural uma nova camada de informação, camuflando a anterior, ainda que não fosse possível a sua eliminação total. A reescrita era uma nova verdade que ignorava o pensamento anterior pré-cristão, procurando instituir uma nova ordem, com uma nova classe no domínio do poder.

Em pleno século XXI, e num (des)alinhamento do caminho feito pela Humanidade, hoje em velocidade cruzeiro, tudo é máscara: a informação veiculada pelos meios de comunicação social e pelas redes sociais, por exemplo, é manipulada para alarmar ou aligeirar o real. Cada um de nós quer revelar o melhor de si, partindo do pressuposto que o erro é altamente censurável, quase criminoso, num tempo em que, não obstante as novas liberdades conquistadas, há uma pressão social para que sejamos perfeitos, mesmo que infelizes e, como escreveu Marcel Proust (1871-1922), algures em Em Busca do Tempo Perdido (1914-27), “Tornamo-nos morais quando somos infelizes.” PALIMPSESTOS, enquanto exercício de curadoria, é, primeiro que tudo, um combate de armas em punho, à falsa moral e aos moralistas de algibeira.

PALIMPSESTOS é um processo de compleição estética de camadas de experiências e das (in)verdades que a pós-modernidade nos convida, quotidianamente, a ver. Nada é o que parece e o que é está no subsolo da superficial plêiade de imagens que a urbe despeja à ânsia do nosso olhar. Sara Maia (n.1974), Jorge Abade (n.1974), Hélio Luís (n.1980), Patrícia Oliveira (n.1983), Ricardo de Campos (n.1977) e Monica Mindelis (n.1978) propõem-nos camadas plásticas, de diletância processual entre a pintura, o desenho, a escultura, a instalação, o vídeo e a performance, que abordam a maternidade, o trabalho, a sexualidade, o pós-colonialismo e a visão do outro, a natureza e o sonho, numa tangente e numa ilusão que nos desafia a contemplar, interagir e reagir. O discurso expográfico, desta vez, permite e promove contágios entre protagonistas e propõe reflexões cruzadas sobre questões filosóficas e existenciais macro, mas que, na tendência de vermos o mundo a partir do nosso próprio umbigo, nos parecem de micro escala, apenas nossas, esquecendo-nos que somos a ínfima parte de um todo plural e brutal.

Esta é uma exposição que revela e esconde, partindo de uma seleção de artistas que deambulam nos caminhos da figuração e que partem de universos filosóficos próximos e, ao mesmo tempo, conceptualmente antípodas. Deve ser lida como um todo de várias partes e, sobretudo, como um grito pela emancipação da verdade invertida que, desatentos, todos ajudamos a proliferar. Ou como escreveu Guy Debord (1931-1994): “Emancipar-se das bases materiais da verdade invertida, eis no que consiste a autoemancipação da nossa época.”²

Helena Mendes Pereira
curadora da zet gallery

¹ MONTERO, Rosa – A Louca da Casa. Lisboa: Livros do Brasil, 2016. Páginas 14 e 15.
² DEBORD, Guy – A sociedade do espectáculo. Lisboa: Antígona, 2012. Página 136.

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