Sim, era preciso recomeçar e a peste não esquecia ninguém durante muito tempo. Durante o mês de dezembro, ela queimou os peitos dos nossos concidadãos, iluminou o forno, povoou os acampamentos de sombras de mãos vazias, não deixou, enfim, de progredir no seu passo paciente e sincopado. As autoridades tinham contado com os dias frios para deterem este avanço e, contudo, ele passava através dos primeiros rigores sem desanimar. Era preciso esperar ainda. Porém, à força de esperar, não se espera já, e a nossa cidade inteira vivia sem futuro.[1]

“A Peste”, que consagrou Albert Camus (FR, 1913-1960) como um dos grandes autores do século XX, foi, segundo dados estatísticos divulgados durante o período de confinamento, um dos livros mais vendidos na Europa. A visão prospetiva de Camus e o teor realista das descrições de ambientes e contextos, tão próximos do agora vivido por todos nós, atiram as suas palavras para o divinatório, evocando a questão essencial da nossa relação com a natureza, com o espaço construído e com os outros, humanos como nós, no transcendente desequilíbrio de contrários, de antíteses e de dialetos. A inquietação de Camus, o seu existencialismo diletante e universalista, o seu fascínio pelo quotidiano moderno (ou pós-moderno) e as narrativas que constrói e destrói com as suas obras têm uma proximidade semântica e concetual, arriscaria, com o trabalho de Miguel Palma. Encontro em ambos o mesmo fascínio pelas perguntas e um resquício de imagens do tempo da fábrica e da absoluta urbanidade em ebulição: a aviação, o automóvel, as cidades que se confundem em arquiteturas de tempos diferentes, a natureza intervencionada pelo homem, a tecnologia, o progresso e, sobretudo, a quietude VS inquietude que tudo isto causa no ser humano, nem sempre humanista. Camus promove, em “A Peste”, um pensamento sobre a anti sociabilização, sobre a pausa e a catástrofe disfarçada de pruridos doentios que é, no fundo, a consequência do desajuste de uma guerra e de um pós-guerra. Miguel Palma (PT, 1964), com um entusiasmo criador (muito para lá de apenas criativo), olha o mundo no tempo de menino, atento a cada novidade e advertindo para possibilidades de encantamentos futuristas. A sua obra poderia ser Fernando Pessoa (PT, 1888-1938), Álvaro de Campos, na problemática dos conceitos de progresso e retrocesso, velocidade, fracasso, gerar e degenerar. Mas é plástica e nem sempre busca na poesia, de forma consciente, a sua essência, ainda que me pareça sempre de uma sofisticação poética esplêndida, de um hino ao sonho e de uma transrealidade, quase surrealidade, intempestiva e obsessiva, no sentido resiliente do termo.

É, contudo, consciente o arrojo da associação de Palma a Camus. Nós somos sempre feitos, também, do nosso tempo e das nossas circunstâncias e este projeto de curadoria começou a ganhar corpo antes do dia em que o mundo parou e a sua evolução foi ditada e influenciada pelos livros lidos (ou revisitados) e pelos estados de alma a que um pensamento livre, condicionado nas suas possibilidades criativas, é levado na viagem. Camus também nos fala de recomeçar e de um recomeçar não contando que tudo passou mas com a urgência da convivência com o que parece ter vindo, ainda, para ficar. Foi por aqui o caminho. A exposição individual de Miguel Palma marca, assim, o tempo de recomeço da programação da zet gallery em contexto de galeria, que se faz acompanhar por uma renovação das suas energias humanas. A obra de Miguel Palma é também essa ignição, já que, a interatividade e os desafios corpóreos que os seus projetos nos colocam, fazem sentir vento em espaço fechado, inundação onde está seco, sol quando está escuro. Ao longo deste período de confinamento, o nosso trabalho seguiu (e seria uma inverdade não o afirmarmos) em contínuo, com o mesmo (ou superior) espírito de missão e na expetativa de quando conseguiríamos oferecer futuro ao artista, Miguel Palma, que desde há largos anos faz parte das preferências de José Teixeira (PT, 1960), presidente do conselho de administração do dstgroup e fundador da zet gallery. Queríamos oferecer-lhe um tempo e um espaço de celebração desta utopia partilhada. Esta é uma história que interessa, por isso, contar. Os homens sem história perdem a possibilidade da luz eterna. Combatemos isso.

Há mais de uma década que tinham ambos este sonho de uma obra de arte que mirasse os céus, que os sobrevoassem e deles viesse. ZÉNITE é, portanto, o verbo, ou seja, o princípio. A exposição parte de um projeto antigo do artista, com José Teixeira, de criação de uma obra de arte para espaço público que integrasse uma avioneta e personificasse um tempo de sonho (talvez utopia) em que arte, natureza e tecnologia se unem na construção coletiva de um mundo da verdade, do bem e do belo. A obra, de escala monumental, cujo processo se documenta neste catálogo, passará a integrar o espólio com quase um milhar de obras do campus do dstgroup e é o ponto de partida para a exposição PROTÓTIPOS: MECANISMOS DE ENSAIO. É o artista quem a nomeia, refletindo o título a sua dimensão de experimentalista, de inventor de coisas belas e mágicas, de instigador dos públicos a confrontos com imaginários, ora vis, ora sãos.

Em “Aprender a rezar na Era Técnica”, Gonçalo M. Tavares (PT, 1970) conta-nos a estória da ascensão e queda de um homem que quer transformar instituto e génio em poder, ignorando as condições do divino e o facto de todos estarmos condenados a perecer, um dia. Um médico que se torna político e que quer que a magia do bisturi tenha reflexos na possibilidade e na ambição de manipular os seus concidadãos. É uma espécie de ode à catástrofe do fascismo, à espreita sempre que nos distraímos do exercício diário da construção coletiva, na perspetiva de esperança que o autor, Gonçalo M. Tavares, acaba por trazer à sua escrita. A noção de engenho, aliada a um princípio (ou negação) de espiritualidade, num pensamento crítico sobre o tempo das tecnologias e dos tecnicismos, tem na obra de Miguel Palma um paralelo plástico e, porque não, literário. Arrisco literário porque, ao longo de mais de três décadas, Miguel Palma tem transitado nos meios e nas matérias, disciplinando-se na escultura, no vídeo, na instalação, no desenho ou na performance, com caminhos cruzados em muitas das suas obras para as quais a História da Arte encontra ainda poucos paralelos. É narrativa e é literária, com ou sem palavras inscritas. O seu trabalho não vem de parte nenhuma que não seja o lugar elaborado da imaginação e das inquietações da mente e da mão, inventoras de engenhos poéticos e imemoriais. É um complexo de coisas que convocam saberes diferentes, indagam o espaço e o invadem numa relação dual entre caos e ordem. Não há certo ou errado, bem ou mal: há a obra e as suas contingências, o seu peso bruto, o seu processo e o que trará de novo aos seus públicos. A indiferença não tem lugar. Com PROTÓTIPOS: MECANISMOS DE ENSAIO será como uma casa nova, num furacão que nos reorganiza.

Esta nova casa, porém, como dissemos, estava ainda em ebulição; as coisas avançavam.[2]

A casa, vulgo zet gallery, integra assim um conjunto de novas obras que acompanham o processo de construção de ZÉNITE, tais como desenhos e quase duas dezenas de esculturas de dimensão pequena e média, concebidos propositadamente para a exposição e, ainda, uma obra de maior porte cujo esquiço objetual integra o motor da avioneta que desmembramos para deixar voar em nós, dst’s, os sonhos acordados com um tempo do futuro mais próximo dos abraços que nos foram vedados. A este corpo central, a expografia agrega oito trabalhos antigos do artista, produzidos entre 2007 e 2019, alguns quase inéditos, como é o caso de “Origens” que, pela primeira vez, tornará o auditório da zet gallery em caixa negra de exposições. Juntam-se “Bipolar”, “Ocidente”, “Férias”, “Air Print”, “Bypass”, “Tempest in a Teapot” e “Oilofon”, tudo na escala da ambição suprema, logisticamente falando. É um desafio a que nos damos: revelar Miguel Palma em Braga depois de a sua obra já ter corrido mundo, integrar coleções de referência em Portugal e além fronteiras. Aqui, na nossa casa, criamos conforto para as suas ironias e divagações feitas obras de arte, damos-lhe respiração e liberdade para ser quem é. É assim que entendemos e que promovemos as relações entre artistas, públicos e instituições. Nós somos apenas o canal facilitador deste triângulo, o motor do avião que ocupa o centro.

Miguel Palma é um artista singular e esta exposição é uma proposta de descoberta do seu processo de trabalho, transformador de objetos em convites à interatividade e à fruição ativa da obra de arte, convocando saberes e um olhar preocupado com o mundo, com os seus micro e macro temas. Miguel Palma vai ao Dada mas é, sobretudo, um acumulador de objetos em repetições de género. Acumula por instinto sem saber, como arranque, se o conjunto será obra. O tempo dita, sobretudo o tempo que se faz alimentar de conhecimento, de sede de ir mais além. Por fim, no contexto de uma abordagem à produção artística contemporânea que a cataloga fora das georreferenciações primárias e a aproxima da globalidade, da globalização e da essência do humano, comum a todos e a cada um de nós, a obra de Miguel Palma não é daqui nem é de além: é dele e é do mundo, é universal e não tem tempo. Miguel Palma instiga as massas à rebelião do comum em nós, dos modos coletivos e, ao mesmo tempo, da individualidade e da interioridade. É um filho da Europa, no mínimo, e o que dele mostramos em Braga está para lá da fronteira: é Arte é sempre espacial, fantasia, como um avião a voar.

Se hoje fizéssemos o balanço no nosso conteúdo mental – opiniões, normas, desejos, suposições –, notaríamos que a maior parte dele não vem ao Francês da sua França, nem ao Espanhol da sua Espanha, mas do fundo do comum europeu. Hoje, com efeito, pesa muito mais em cada um de nós o que existe de europeu do que a sua porção diferencial de francês, espanhol, etc. Se se fizesse a experiência imaginária de nos limitarmos a viver puramente como o que somos, como “nacionais” e, em jeito de mera fantasia, se se extirpasse ao homem médio francês tudo o que usa, pensa, sente, por receção dos outros países continentais, sentiria terror. Veria que não lhe era possível viver só disso; que as quatro quintas partes do seu haver íntimo são bens jacentes europeus.[3]

 

PROTÓTIPOS: MECANISMOS DE ENSAIO para ver na zet gallery, em Braga, até 28 de novembro de 2020.

 

Helena Mendes Pereira

 

[1] CAMUS, Albert – A Peste (1947). Porto: Porto Editora, 2016. Página 219.

[2] TAVARES, Gonçalo M. – Aprender a rezar na Era da Técnica (2007). Lisboa: Caminho, 2016 (10ª edição). Página 321.

[3] ORTEGA y GASSET – A Rebelião das Massas (1930). Lisboa: Relógio D’Agua, 2019. Página 168.

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