Dentro do oco bronze

por Alberto Rodrigues Marques

A violinista da Rua do Souto; o caricaturista de Monte Gordo; os dançarinos do Chiado; Teresa, a pintura digital na praça de entrada do Altice Fórum de Julian Opie; ou a homenagem a Cristiano Ronaldo em bronze, na ilha da Madeira, são algumas sugestões, diversas entre si, de intervenção pública no nosso país.

Desde há muito que a rua é um suporte à intervenção artística, em que todo o homem por direito cívico ou por reacionismo imanente, tende a utilizá-la dessa forma como um campo de batalha onde se ganha o pão, onde se propõe o exemplo, onde se decora o espaço, como tentativa de completude estética, ou ainda onde se homenageia alguma entidade que, por fruto do momento ou então do tempo, se entenda que mereça esse louvor.

Na minha opinião, tem tanto direito a vontade legal de um presidente de Câmara Municipal em colocar uma escultura num centro de rotunda rodoviária, como um writer noturno que ilegalmente pinta vagões de comboio. O direito é o mesmo, contudo haverá um dever essencial inerente às manifestações públicas. Esse dever tem que ver com um compromisso comunitário.

Não se trata de enfeitar o espaço comum, ou de enriquecê-lo, muito menos de privilegiar um autor ou um grupo destes, ou louvar uma entidade, mas sim de responder a uma necessidade comum, pública, inevitável, inadiável! Essa necessidade pode contradizer o início do parágrafo anterior, se algum desses fatores forem como eu disse, necessários, comuns, inevitáveis e inadiáveis. É impossível que todos os indivíduos de uma comunidade retirem o mesmo sumo de uma mesma obra. É impossível que esta agrade a todos. Mas há uma possibilidade dentro destas impossibilidades, de uma mesma obra trabalhar num sentido comum e essencial.

Uma escultura de vulto redondo que homenageie um indivíduo do século XVIII, que indiscutivelmente nesse período tenha merecido esse louvor, seja hoje vista como alvo de ataque e vandalismo, demonstra uma oscilação, nos valores das comunidades, e nas suas interpretações, algo que se deverá tentar prever no momento de intervir publicamente, por mais difícil que isso possa ser. Isso será o estudo essencial da verdade pública. A avaliação democrática do necessário, comum, inevitável e inadiável.

Dependendo das caraterísticas materiais de uma obra, esta pode ser de caráter efémero ou permanente. Se falarmos dos dançarinos do Chiado, os efeitos secundários do momento existem de uma forma efémera, se falarmos de um bronze, os seus efeitos secundários podem apenas surgir séculos mais tarde, chamaremos a isso permanente, embora saibamos que em vida e em arte nada é permanente, apenas mais ou menos duradouro.

A verdade pública pode estar submersa na comunidade e só vir ao de cima por advento de uma individualidade. A evolução surge muitas vezes mascarada de aldrabice, sobretudo quando aparece isolada numa só mente. Quantos foram os que à frente do seu tempo, pregaram os pregos de uma nova mística social, e passados os anos se tornaram nos pais desses adventos?

O impacto social de uma intervenção pública pode-se estender no tempo como ondas num oceano, pode criar autênticos tsunamis que tragam uma nova vida às comunidades. Estas podem-se envolver de tal ordem nas suas produções técnicas e conceptuais que acabam sendo feitas pelas próprias, ou por outro lado, ser como um grão de areia que fazendo uma travessia aérea, se deposita sozinho no meio de um mesmo oceano sem que daí resulte alguma coisa.

Quando mergulhamos no conjunto escultórico de uma cidade como Braga, encontramos recantos da cidade que são completamente desconhecidos da população em geral. Há bronzes com orifícios que escondem de tudo, dedicatórias deixadas pelos autores, homenagens que viram motivos de chacota e as que não viram, ou estão abandonadas ou uma árvore trata de as esconder. O bronze terá certa resistência ao tempo, mas a ideia, que de longe lhe resiste muito mais, esvaísse na comunidade que morre, e dá lugar à comunidade que vem com o mesmo tipo de manifestações.

O espaço público é um ciclo de intervenções das comunidades que por ali passam, sempre incompleto, sempre em mudança. O grau de satisfação de uma comunidade revela-se bem nas intervenções públicas. Não sei se será correto dizer que uma sociedade que quer sempre mais obras, sempre mais coisas a acontecer seja uma sociedade mais inquietada ou menos satisfeita. Trata-se aqui de assertividade. Por vezes, uma comunidade pode ter acesso a menos freneticíssimo cultural e por isso indagar-se mais sobre o seu peixe, recriar-se mais nas suas intervenções, e por isso ver com maior grau de inquietação e proximidade as suas obras, e estas serem acolhidas com mais espírito crítico.

Repare-se no poder da intervenção pública: desde que a pandemia da covid-19 surgiu, houve uma grande percentagem de janelas de casas que vistas desde a rua, apresentavam arco-íris desenhados de todas as formas onde se podia ler “Vai ficar tudo bem.”, como um grito da própria casa, uma mensagem de esperança que se generalizou.

Pois bem, esta é a última coisa que vos quero falar em relação às comunidades e à sua relação com a arte pública. A esperança de que amanhã se revisita o passado é a grande experiência das intervenções públicas. A esperança de que amanhã o que hoje era de louvar, continuará a ser louvado, a esperança de que amanhã estará aqui o exemplo para se construir por cima dele o exemplo do dia seguinte, a esperança de que o som do violino que se ouviu hoje na Rua do Souto se ouvirá amanhã ecoar nas mesmas pedras gastas pelo som das comunidades cíclicas, a mesma esperança que a calçada do Chiado, gasta pelos pés e pelos corpos de dançarinos de breakdance será gasta pelos dançarinos das novas danças que vão aparecer. Que este palco, ou suporte que é a rua, não se ganha, não se conquista, mas dá a liberdade de conquistar a vida e a esperança, de conquistar uma memória que é a das comunidades. A esperança de que amanhã a Teresa, continuará a correr, na mesma direção, e que o terceiro arco do Movimento Perpétuo se complete na colina da cividade e dê lugar a um quarto hipotético e ideal!

 

AlbertoRodriguesMarques

20/08/2020

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