À primeira vista, não senti grande afinidade entre os autores e as obras apresentadas, pelo menos uma afinidade que fosse além do formato de Pintura ou do pensamento pictórico. Da mesma forma, não me pareceu que houvesse, também, grande afastamento entre as propostas, um afastamento que ultrapassasse os processos, entre si, muito diferentes, como as colagens de Paulo Moreira (n.1968), Manuela Pimentel (n.1979) ou Mafalda Santos (n.1980); ou a pintura a óleo de Gil Maia (n.1974), a de acrílico de Acácio de Carvalho (n.1952) ou, ainda, as aguarelas e impressão de Sónia Carvalho (n.1978).

A verdade é que o terreno, nem convergente nem divergente, me suscita um estado de gravitação constante entre os aglomerados materiais de cada proposta planetária, onde o afastamento e a proximidade se mantêm, até que nos sentemos demorados em frente de cada um e os interpretemos nas suas singularidades. Aí sim, nasceram algumas linhas narrativas que me orientaram na relação entre cada um destes astros que gravitam no universo da galeria.

Comecei por Acácio de Carvalho, pela sua posição de destaque neste universo onde a translação em torno do observador/artista é de maior dimensão. É a fase inicial desta proposta, a figurativa, que mais me inquieta, a ponto de não perceber o meu lugar perante o que sinto. Não têm título e, por isso, não consigo vê-las como uma imagem. Elas são o esvaziamento da Pintura, do plano branco cheio, nestas esvaziado pelas representações muito conclusivas que não desvelam a natureza nem medeiam o mundo. São vazias e por isso tiram a pintura de cena. É como se desconstruíssem, para dar espaço à segunda parte da translação, as Absides.

As segundas desvelam esse mesmo movimento transmutativo em torno de mim e, em parte, revelam a verdadeira superfície material da pintura branca, que merecem o respetivo destaque da agregação material e conceptual que reconheço em Arte. É curioso o percurso deste grupo de obras, a desconstrução é figuração que, por sua vez, dá lugar ao que vejo enquanto imagem, forma onde lhe leio o título. Acácio de Carvalho pinta com um coração terreno, modela com camadas, raspa superfícies, faz viagens de gradação, até que atinge o observador, rodeando-o.

Sónia Carvalho destaca-se também pelo seu lado terreno e humano, mais do que a ocupação das NOVAS BABILÓNIAS, este trabalho é a figura tutelar deste universo. O caráter alegórico da figura mulher prevalece muito para além das aguarelas ou da impressão. Alegoria da cidade. A mulher que move blocos é a mãe do espaço, a definição do lugar. O corpo é determinante para este entendimento, bem como a luz. Sónia Carvalho dá à luz o seu corpo e ascende num posicionamento de ocupação desmedida do espaço, antes e após o observador. É a vigia e a proteção do universo. A figura que determina, a figura procuradora, terrena, mas invisível.

Dos interditos da vida a morte é inultrapassável – não será possível que Mafalda Santos ou Gil Maia nos provem o contrário. A menos que nos sentemos demoradamente e os deixemos gravitar em torno do Sol que somos, não saberemos quem lança a luz à ideia de macro escala. Sinto-me bem pequeno juntos das suas massas.

As aglomerações rítmicas dos cadernos de Mafalda Santos remetem-me de imediato para as grandes urbes. São impessoais, imponentes, gigantes. Massas maiores atraem mais pequenas e não há como não entrar num estado hipnótico na presença destas imagens. Lembro-me de grandes construções High Tech, códigos indecifráveis, adoração e devaneio. Um trabalho meticuloso, delicado, mas muito pouco frágil. A montagem revela-nos o distanciamento que elas têm de nós e a impossibilidade de as albergar no nosso seio – é como se estivéssemos sem rumo, à sua deriva.

A certa altura o homem teve a necessidade de esconder o seu igual morto. Esconder não só da voracidade dos animais selvagens, mas também da violência que era ver o descarnar do corpo. Gil Maia esconde e protege o plano branco, cria barreiras, planos maciços que protegem a pintura da voracidade do observador. Ao mesmo passo há alguma coisa de partida e de chegada, alguma coisa de fugacidade de uma gare industrial, o fumo e tudo. Os planos que ocultam rangem nas marcas raspadas. Há silêncio e alarido, dor e medo, harmonia e dúvida. É interdito, mas atrativo.

Paulo Moreira define-se pela pluralidade, o impenetrável e o grotesco. É sem dúvida também sobre o interdito da morte, embora vivido não como Gil Maia ou Mafalda Santos, senão num plano interior expandido à pintura. Há nesta proposta a alusão à partição dos sistemas habitacionais, cada qual no seu galho, porém todos com uma identidade pessoal vincada. São auto questões que desvendam a presença desta interioridade aumentada ou duma relação prazerosa com a morte. A pintura é risível bem como o desenho, a colagem ou a escrita, mas são de uma coragem ígnea e cintilante. Paulo Moreira pinta a aparição de Nossa Senhora ou um Baile de Favela, agregados sem olhar a preceitos. Cada obra é um desventrar a Serrote do seu estado interior, cada estado uma parafernália de emoções, dúvidas e desabafos, qual não é a sua organização interior e o seu exercício de libertação pessoal.

Vaticina-se a violação empregue no trabalho de Manuela Pimentel. São as máquinas de imaginar, a torneira, o carro, que iniciam essa viagem de volta ao início. São os planos vandalizados da azulejaria portuguesa. Mais do que isso – é o interior das paredes e o que nelas ecoa que vem bater na nossa voz interior. Bate de frente e apodera-se dela. O choque frontal entre um material pobre e o tornar visível de uma técnica antiga, uma técnica rica, que faz as paredes falarem. Ouvimos as vozes já sucumbidas dos que por aqui passaram e já não estão, pois este astro está bem lá distante, fora do nosso sistema solar e por isso a sua luz, ou a sua voz chega mais tarde. Uma voz presente em nós passada para quem a emitiu. Só agora chegou a nós Manuela Pimentel, passados todos estes anos-luz de distância. Chegaram os ecos do seu interior, a pintura do seu âmago e, na verdade, não é um interior fechado, é uma interioridade ouvinte, atenta, que não fechou os canais do seu alimento.

Quantos não são os astros e suas particulares competências, quantas não são as estrelas e as suas forças gravíticas. O universo é um sem espaço livre e solto onde somos atraídos e repelidos, o lugar do homem e da arte.

AlbertoRodriguesMarques
Assistente de Curadoria | Artista Plástico

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