A arte não é um processo de exclusão por modas, mas de requalificação e reinvenção por modos. A seleção de artistas, em processo de formação ou recém-formados pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, que integram a exposição coletiva SINGULAR PACE surge no âmbito da edição de 2018 das Galerias Abertas (GA-AB) e das propostas que ocuparam o espaço da Escola. Marcadas pelo informalismo e, em alguns casos, pela gestão do espaço a partir do caos dos ateliers, nas GA-AB as propostas de centenas de estudantes e ex-estudantes destacavam-se quando mantinham o fio condutor na experimentação de processos e de materiais, articulando ousadia conceptual e um certo virtuosismo, de certa forma, classicizante. No edifício do antigo Convento de São Francisco, a distribuição fazia-se por disciplinas e ciclos de ensino, parecendo-nos que os cruzamentos de formas de ver estavam para além da escolha de materiais e suportes.

Do que se fala quando se fala de Pintura? Do que se fala quando se fala de Escultura? Serão o desenho, a ilustração, a instalação, a fotografia intervalos, aglomerações ou compensações? Comecemos pela pintura. “Atualmente, a prática da Pintura (pelos Pintores) é uma tekhné aparentemente distinta daquela que se praticava na sua origem. Precisamente, os modos e os meios de passar conhecimentos foram alterados. Da oficina, onde se privilegia a relação mestre/discípulo baseada na observação do fazer e numa escuta por parte do aprendiz, passando pelo ensino coletivo em academias ou à aprendizagem autodidata, manifesta-se uma perda da ordem do esquecimento das referências autorais, dos modos de fazer, dos recursos técnicos e, igualmente, emerge um ganho na pintura enquanto tekhné, ou seja, como uma prática que alia instrumentos próprios, saberes e modus operandi ao raciocínio inteligente. A análise desta perda e deste ganho mostra como a pintura, tal como as outras artes, tem um percurso de constantes atualizações onde é possível verificar, através das obras pictóricas tomadas como testemunhos desta prática artística, a absorção e inclusão de outros media que, ora complementam, ora substituem os tradicionais – e assumindo definitivamente uma posição contracorrente – sem «matar» a pintura, no sentido de lhe anunciar um «fim».”¹

Alberto Rodrigues Marques, André Silva, Dora Meirelles, Fábio Veras, Francisco Correia, Rúben Lança, Sal Silva e Tiago Santos vêm claramente da pintura. Pensam o objeto artístico na sua bidimensionalidade, ainda que as suas linguagens tenham derivações concretas de influência, por um lado, no neoexpressionismo abstrato, matérico, caminhando em alguns casos para a essência da abstração através da poética e da cor enquanto valor absoluto e, por outro, nos neoexpressionismos anglo-saxónicos que emergem na década de 1950 e em que se trabalha a figura humana de dentro para fora, ou seja, da emoção para a expressão, no apoio da anatomia e da representação.
Carla Afonso, Carolina Serrano, Jéssica Burrinha, Joana Pitta (Não Joana) pensam o objeto escultórico. Lena Wan posiciona-se com a fotografia. Ana Sofia Sá, Rodrigo Empis e Rita Vidigal, bem como mikha-ez (com Javier Ayuso) experimentam o vídeo: os primeiros três enquanto trabalho coletivo e mikha-ez em colaboração. Ana Sofia Sá, Marco Pestana, o próprio mikha-ez e Poli Pieratti situam-se, contudo, se pensarmos na instalação enquanto prática, no campo da hibridez, na designada Arte líquida, que se adapta do pensamento de Zymunt Bauman² (1925-2017). Negação das formas e dos formatos, num exercício do ser do hoje e da vanguarda, procurando beber para lá da Academia. A seleção pretende “demonstrar que a um processo cultural híbrido a resposta pictórica passa por uma composição de elementos formais representativos de origens culturais diferenciadas que se interligam num processo de cut and paste (…). O processo cut and paste composto pela apropriação de identidades pictóricas diferentes resgata-as pela sua utilização/recriação, criando novos contextos, através de sobreposições, transparências, camadas criando planos, criando perspetiva. A conjugação destes vários elementos pode gerar uma multiplicidade de soluções, renovando o seu significado e mensagem.”³

São caminhos, são periferias. Tudo o que se apresenta em SINGULAR PACE é o início do caminho de um autor, em alguns casos, ainda em formação. O início acentua-lhe a periferia. Acentua-lha a perspetiva de laboratório enquanto lugar de experimentação, do desbravar da ciência das coisas. Nestes 19 autores, perseguindo a filosofia de Clive Bell (1881-1964), “a arte não é acerca da vida, mesmo quando parece sê-lo. O único conhecimento relevante que o observador precisa de ter é um sentido de forma, de cor e de espaço tridimensional.”4 Na juventude dos protagonistas de SINGULAR PACE, a ausência de carga emotiva contribui para a construção de um percurso de maior liberdade, despojado de preocupações mundana, burguesas e, até, senhoriais e coloca a atenção no processo criativo enquanto processo de aprendizagem, construtor de uma identidade visual e promotor da consistência de um projeto.

E sobre o nome? SINGULAR PACE nasce da sugestão imagética da instalação de Ana Sofia Sá: um conjunto de gessos com o molde do vazio entre as pernas de uma mulher, repousados sobre um conjunto de cadeiras de escola. A obra encantou-me pela sua singularidade. Lembrei-me de um filme que Manoel de Oliveira (1908-2015) realizou, “Singularidades de uma Rapariga Loura”, e que parte de um conto com o mesmo nome de Eça de Queiroz (1845-1900), o primeiro conto realista da literatura portuguesa. A obra de Ana Sofia Sá lembrou-me aquela personagem, formal e simbolicamente. A partir daí, considerando a seleção de artistas, as suas disciplinas, metadisciplinas e transdisciplinas, a exposição desenvolve-se ritmadamente, procurando configurar e abrir, ao mesmo tempo, formas de ver e sentir no espectador.

Helena Mendes Pereira
chief curator da zet gallery

¹MACEDO, Rui – “De que se fala quando se fala de Pintura” in SABINO, Isabel (coordenação) – And Painting? A pintura contemporânea em questão. Lisboa:
CIEBA-FBAUL, 2014. Página 46.
²BAUMAN, Zygmunt – Modernidad Liquida. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2012.
³CORDEIRO, Conceição – “Tempos do ‘cut and paste’? Uma leitura híbrida da Pintura” in SABINO, Isabel (coordenação) – And Painting? A pintura contemporânea
em questão. Lisboa: CIEBA-FBAUL, 2014. Página 71.
4 WARBURTON, Nigel – O Que é a Arte? Lisboa: Editorial Bizâncio, 2007. Páginas 22 e 23

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