Apresentação “3C – Compasso, Contacto e Contratempo” 12.ª exposição shairart na Galeria Emergentes dst, por Rafaela Ganga
Em novembro de 2015, aceitei com muito gosto o desafio de comissariar a 12.ª exposição da shairart na Galeria Emergentes dst. Este foi um convite que se assemelhou a uma tela em branco, na qual teria total liberdade de construção de projeto expositivo, tendo apenas que mostrar o que de melhor a shairart estava a fazer.
No momento de desenhar este projeto, não pude deixar que a minha biografia o influenciasse, eu sou do Porto, fiz, praticamente, toda a minha formação no Porto e, nesta primeira exposição fora da minha cidade, teria que me fazer acompanhar de artistas da minha cidade.
De igual modo, este convite, assim como o facto do nome da galeria remeter para a arte emergente, motivou uma reflexão sobre a contemporaneidade do contemporâneo. Um aparente pleonasmo, porém, faz sentido questionarmos hoje o porque se ainda considerarmos contemporâneo um momento artístico que emerge nos finais dos anos de 1960. Sem dúvida que a arte do presente convida a questionar a extensão desse mesmo presente. O presente do contemporâneo de circa 68 é ainda hoje presente, na segunda década dos anos 2000.
Uma outra influencia marcou esta exposição. Building Culture é o moto da dstgroup e numa oportuna conversa com o presidente do grupo nasce a ideia do 3C. Se pensarmos em 3C associados à dstgroup, poderíamos pensar em cultura, capital e contemporaneidade; se pensarmos e 3C para a arte quer se faz hoje podemos pensar em compasso, contacto e contratempo.
Convidamos 16 artistas, do contemporâneo de ontem e do contemporâneo de hoje a expor na Galeria Emergentes dst, obras produzidas entre 2010 e 2015, que partilham o Porto como superfície de contacto.
Os e as artistas desta exposição, na sua interpretação alargada do tema, iluminam os desafios, as oportunidades (entre)abertas, assim como as incertezas que parecer emergir do compasso entre cada obra.
Não pretendo substituir a visita à exposição, gostaria apenas de deixar algumas notas que nos ajudam a entrar no universo simbólico que aí foi construído.
Sobre a exposição
A primeira sala, recentemente remodelada, acolhe obras de Ana Almeida Pinto, Rui Tavares e Carlos Marques, em combinações inesperadas.
Ana Almeida Pinto é uma jovem escultura preocupada com as vivências do mundo contemporâneo, muito particularmente com os efeitos da crise económica e social de 2008. As suas obras são chamadas de atenção, mas mesmo tempos que abrem janelas de esperança. Em “Geração Arrasta” (2015), uma escultura em vidro (Marinha Grande) e moedas de 1 cêntimo, Ana com o trocadilho do título está a tratar a dificuldade de toda uma jovem geração que conta cêntimos para viver e se vai arrastando com o peso das dificuldades. “Dos ( ) não reza a história” (faiança e ferro, 2015) chama a atenção para a ideia ilusória de que este é um período transitório, um intervalo no decurso normal da história. Será? “Tágides (Engenho, Fúria e Verso)” no seu título não deixa margem para dúvidas que a artista nos convida para o imaginário de Os Lusíadas, de Luís Camões. As tágides, as ninfas do rio Tejo a quem Camões pede inspiração para compor a epopeia portuguesa, são aqui evocadas, uma vez mais, em busca de inspiração para um outro futuro.
Ainda que Carlos Marques não tenha sido professor de Ana Almeida Pinto, esta artista aponta-o como alguém influente na sua obra.
Carlos Marques, cujas obras integram coleções consagradas como as do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, British Museum ou o Museu do Douro, propõe nesta exposição uma exploração de natureza e paisagem com três peças escultóricas. Sublinhamos, por puro gosto pessoal, a obra “Os esboços que cresciam pelo pavimento não permaneceram em standby” (2015). Nesta obra, e me outras da mesma série, compreende-se como o percurso de vida de um artista influencia profundamente a sua obra. Quando Carlos Marques funda a ESAD aproxima-se do design, em particular do deisgn de mobiliário, nascendo daí o seu interesse em fazer cruzar a escultura e objetos do quotidiano, como é o quase das mesas. Esta obra, que comporta partes de obras anteriores, faz-se mesa, assumindo um estatuto hibrido (obra de arte e mesa), ao mesmo tempo que permite resolver o pedestal da escultura. Nesta obra, a escultura afaste do chão, eleva-se, mas não num pedestal, assim como se aproxima do quotidiano.
As quatro obras de Rui Tavares expostas, pelo sue tamanho obrigam a que nos aproximemos para sentir o pulsar dos seus traços. Este artista tem uma abordagem à abstração que recorre à estrutura caótica, num fluir entre forma e cor. Propõe-nos, nesta primeira sala, 4 momentos de intervalo para respirar enquanto nos perdemos nas múltiplas sobreposições que conferem uma força textural à obra deste artista. Este são os momentos para parar de pensar e apenas sentir.
Recuperados do primeiro momento, a exposição continua pelo longo corredor deste white cube, que é interrompido por duas obras de António Quadros Ferreira, que se impõe ao visitante uma vez que saíram da parede e ocupam a passagem, numa linha quase infinita. Artista cuja obra é organizada do pensamento sobre a pintura contemporânea, é Professor Catedrático Aposentado da FBAUP e orientador de Doutoramento de Ana Pais Oliveira. Artista que partilha o corredor com António Quadros Ferreira.
Desprendendo-nos de qualquer intenção de análise justa às obras P1_1 e P1_2 (2013), atrevemo-nos a olhar para estas duas obras do projeto Cosmogonies através de algumas afinidades eletivas com Almada Negreiros, nomeadamente no rigor, exigência e capacidade de movimentação estética. Em que é que isto se traduz? Na acuidade de ver, isto é, na perceção visual, na elaboração imagética; no primado do número, pelo recurso ao cálculo na construção pictórica; e, por fim, o “cosmogónico”, ou seja, o recuo à génese.
Na obra Ana Pais Oliveira, que nos espera no fundo do corredor, “Solução de habitação #5” (2015), observa-se uma óbvia relação entre pintura e arquitetura. Problemática continuada na penúltima sala da exposição com as obras “New strange place to live #16 (2011)” e “Desired Shelter #11” (2011). Na obra de Ana Pais Oliveira a relação entre pintura e arquitetura não é a apenas um somatório de ambas, mas composições moldadas pela cor e só depois pelo traço. As obras expostas, quase como propostas de habitação, remetem-nos para espaços arquitetónicos domésticos.A casa pode ser o lugar de conforto e segurança, experiências e memórias, tal como é discutida na obra de Alexandra Barbosa. A casa na obra desta artista é sinónimo de refúgio, um local seguro onde é possível guardar as emoções e defender a memória. A casa acontece em “Soledad” (2013) enquanto útero, que protege e alimenta, que cuida e acolhe. Contudo, o exterior é caótico, escuro (relação entre o branco do interior da casa e o preto do exterior que a protege), que remete igualmente para dimensão precária, perigosa de algum tipo de habitação e vivencia dessa mesma habitação. Distanciando do uso doméstico da habitação, a obra de Alexandra Barbosa é, igualmente, uma proposta de análise da cidade.
O trabalho de Nuno Raminhos contém citações explícitas à linguagem comics, essencialmente ao retrato de super-heróis e heroínas. Roy Lichtenstein, ainda que as personagens de Lichtenstein apareçam sempre como retratos simbólicos da industrialização, é uma referência que nos salta à memória assim que nos confrontamos com a obra de Raminhos. A pintura de Nuno Raminhos organiza-se entre o figurativo, o fantástico e a cor, remetendo diretamente para o imaginário do artista. Da comics toma de empréstimo o desenho explícito figurativo, a cor e a dimensão narrativa – expetativa da próxima cena e a dúvida face à cena anterior. Em “L’America” (2007), como em outras obras de Nuno Raminhos, observa-se um exercício de antropomorfização dos animais, num retrato que apela à incapacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Cruzando mais um corredor, encontramos as obras de Helena de Medeiros e de Mário Bismarck.
Helena de Medeiros tem vindo a trabalhar com múltiplas companhias de danças, espelhando nas suas obras retratos desse processo. Procurando uma arqueologia da luz, Helena de Medeiros incorpora o traço imperfeito, quase pré-histórico para registar o quotidiano e o movimento neste.
Eduardo Paz Barrroso, num texto de 2004, refere-se à obra de Bismark como estando num exercício de encenação auto-irónica da pintura. Em “Landing Ekstasis” (2013) o artista parte a proposta em dois, arrumando a sua obra em duas zonas distintas, sem aparente relação entre si. Por um lado, observa-se a construção de alegorias alternativas em múltiplas camadas simbólicas, através de uma figura feminina sentada em cima de crocodilo, lembrando o deus hindu Varuna (responsável pela ordem do universo), ao mesmo tempo que segura uma pomba, símbolo, em múltiplas religiões, de paz, amor, mas, também, de comunicação (mensagens); do outro lado, uma imagem exuberante, em tema e expressão estética, que remete para um fotograma cinematográfico, lembrando intencionalmente a exposição da nudez e exploração do corpo feminismo na cultura de massas e de consumo. Numa relação entre cinema e pintura, Bismarck parece questionar o lugar da pintura numa sociedade da imagem, essencialmente da imagem instantânea, espetacular que recorre ao sexo como estratégia de comunicação. Porém, fisiognomonia (conhecer o carácter humano pelas feições do rosto) presente na obra de Bismarck retém-nos e devolve-nos à exploração sensorial e sensual da representação figurativa da mulher na arte. Esta questão é mais clara em “Giubilo” (2015).
Ao entrar na sala central e penúltima, deparamo-nos com a obra de Manuela Mendes da Silva. Esta artista parte de um estilo figurativo, evoluindo para uma proposta abstracionista em que perdura o gesto e o romantismo. Porém é a luz que emana das suas obras que nos seduz.
Em maio de 2013, Gracinda Candeias foi diagnosticada com uma inflamação provocada pela tinta a óleo, que usa há mais de 30 anos. Decidindo, por conseguinte, abandonar a técnica. Os últimos óleos de Gracinda Candeias, intitulados “AERIS II” e “AERIS III” (2010), titulo que nos remete para os céus da Renascença e inspirações em atmosferas, estão patentes na Galeria Emergentes dst. A obra de Gracinda Candeiras traduz o constante movimento das viagens transcontinentais e das viagens culturais que a sua biografia imprime. Assim se compreende que a artista assuma que a sua expressão é um espelho biográfico. Na obra desta artista, reduzida a um máximo de 3 cores e uma cor final dissonante, o gesto acontece tal como na obra de Manuela Mendes da Silva, aproximando-se de uma luta corpo-a-corpo entre o eu da artista e a tela presa à parede.
À similitude das obras de António Quadros Ferreira, um dos desenhos de Mário Américo integrou a exposição o Lugar do Desenho, na Fundação Júlio Resende, entre março e maio de 2015. Os desenhos que Mário Américo nos propõe parecem estar reféns do dilema de representação e de insinuação, o que provoca indecisão e mobilidade nas composições. Desenho a óleo, grafite e carvão que remete para a discussão da mecanização e coloca o ser humano como autor e vitima, ao mesmo tempo, do processo de industrialização; enquanto as linguagens partilham da mesma ambiguidade entre o figurativo e abstrato.
A obra de Catarina Machado é uma ode ao mar. Presa ao encanto da ondulação marítima, através da criação de ambientes cromáticos e de traços que remetem para as linhas desenhadas pelas manobras de uma prancha de surf, esta artista inunda a sala de azuis.
“Rhythm in B(F_G)” (2015) de Fátima Santos é uma pauta à espera de ser tocada. Nesta obra, observa-se no processo pictórico a simbiose entre teoria musical e pintura, através de várias correspondências, mais especificamente entre cores e notas e formas geométricas e intervalos musicais. A paleta de Fátima Santos parte de uma base violeta, amarelo-laranja, verde-amarelo e branco que equivalem às notas Si, Fá e Sol, respectivamente, uma vez que a cada das doze cores do ciclo cromático esta artista faz corresponder as doze notas musicais.
Da série Remote Natura, os desenhos de Sílvia Simões expostos são a reinterpretação das paisagens de terrenos agrestes e inóspitos. Recriação gráfica, filtrada pela memória, de elementos naturais, marcas, cores, cheiros e texturas.
Para terminar esta viagem, a exposição convida a que se abandone a luz da galeria e pare a observe a obra de Rui Aguiar na quietude da última sala. Manipulação fotográfica e pintura digital, estas obras são o que o autor chamou de notas virtuais sobre a plasticidade do corpo feminino. Obras que remetem para a consciência íntima do autor e das memórias dos corpos das mulheres que cruzaram a vida do artista. Executadas em computador, ao longo dos últimos anos, na sua maioria sem nome ou data, ganham corpo à medida que são expostas, sendo apenas aí que o artista admite que estas adquiram título e data – identidade.
Esta é uma exposição pretensiosamente inquieta e interdisciplinar, que convoca obras que, por sua vez, convocam outras obras, de outras disciplinas. Vemos pintura e escultura a chamar pela literatura, pelo cinema, pela arquitetura, pela música e pela banda desenhada. Roubamos a pintura à parede e a escultura ao chão e ainda oferecemos à manipulação digital a fotografia.
Nada destas provocações existem sozinhas e muito menos neste papel. Elas precisam de visitantes. Aqui estão apenas palavras, enquanto que é na Galeria Emergente dst que estão as obras. Apareçam!
Rafaela Ganga
Chief Curator