Andamos a beber e a alimentar ideias fora do lugar, não por sermos geneticamente a elas avessos, mas porque as ideias que transformam as sociedades não são as que sobre elas pairam, repetidas ad nauseam no discurso de todos os dias, mas sim aquelas que criam raízes e se transformam em comportamentos individuais e sociais, isto é, aquelas que se intrometem e impregnam a cultura do quotidiano.1

A primeira ideia que esta exposição coletiva pretende afirmar e impregnar na cultura do contemporâneo é a de sinergia entre pessoas e projetos em prol da convicção de que a cultura é o único veículo capaz de transformar, de forma profunda e sustentável, os territórios, somando-lhes valor e configurando-os como lugares possíveis do sonho e do desejo coletivo. Neste sentido, mantendo a batuta no arranque da edição de 2018 da Feira do Livro de Braga e na gala de apresentação da 23ª edição do Grande Prémio de Literatura dst, que este ano premeia a poesia de Daniel Jonas. O conceito de cidade com que queremos fazer vingar é diferente do visceral e real do premiado que, com as suas palavras, nos mantém alerta e nos obriga a procurar não propagar o odor nauseabundo das clivagens socias que, cada vez em maior número e escala, nos marcam as ruas. Escreveu Adorno (1903-1969) que a ponta que a arte volta para a sociedade é, por seu turno, algo de social, reacção contra a pressão opaca do “corpo social”; tal como o progresso intra-estético, progresso das forças produtivas, especialmente da técnica, está ligado ao progresso das forças produtivas extra-estéticas.2 O sociólogo alemão, que ligamos à denominada Escola de Frankfurt, na admissão da importância do irracional, respeitando a negação, as contradições, o diferente, o dissonante e o inexpressável, leva-o a valorizar a Arte e a criação artística, sobretudo a vinculada com a vanguarda. Promover o contacto generalizados dos públicos com a criação artística contemporânea é a nossa forma de reagir e, sobretudo, de agir.

Para a ação escolhemos sete protagonistas (sendo que um dos protagonistas divide palco com o grupo de outros protagonistas que com ele, no seu atelier, aprendem e exploram a cerâmica). Todos eles trabalham numa dimensão objetual mas não necessariamente de base escultórica, dado que inclui artistas que partem da expansão da dimensão mais lata da pintura, expandindo-a. Porquê o objeto tridimensional? Porquê a escultura, em sentido mais lírico? Recorrendo às palavras de Delfim Sardo, tudo tem que ver com a ausência ou com a presença do corpo e dos seus significantes que esta invoca e que nos interessa explanar, propor, impor cívica e esteticamente:

A escultura nasceu de uma outra atividade mais antiga: a estatuária. E a estatuária sempre foi uma evocação da ausência – de alguém que desapareceu, de um acontecimento que, por já não estar presente, deve ser congelado em pedra ou em bronze.

O nosso grau zero, o ponto de partida, é o seguinte pressuposto: a escultura é o substituto da estatuária e na sua afirmação está contida a sua morte, até porque a morte, a sua evocação, a evidência da ausência estão sempre no interior do processo escultórico. Nesse sentido (e este é o segundo pressuposto), a escultura do século XX consiste num permanente retrabalhar da ausência, de um corpo que já não está lá – porque está noutro lugar, porque foi metamorfoseado, porque dele só resta um indício. Nesse processo, a escultura ampliou-se; ampliou-se tanto que deixou de o ser para se transformar no genéro artístico mais difícil de definir, mais difícil de circunscrever, porque a sua amplitude quase não possui exterior. (…)

A escultura é o casulo para o nosso corpo, o mais perfeito correlativo da própria ideia de museu.3

As perguntas, as dúvidas interessam à curadoria e interessam a esta curadoria. Interessa-nos questionar o disciplinar na arte contemporânea, sensual, insaciável no seu anseio de prazeres, sulcada por impulsos turvos4. Na seleção dos artistas, questionar a escultura enquanto disciplina, os seus limites, tendências e possibilidades determinou a escolha. Procuram-se os cruzamentos geracionais e autores com diferentes abordagens conceptuais e técnicas, bem como diversidade de metodologias e de materiais utilizados. Seis deles têm-se constituído como apostas curatoriais da zet gallery e, mantendo as práticas adotadas desde janeiro de 2017, as exposições são excelentes oportunidades para desafiar ao projeto artistas que habitam o quadro estético em que nos inscrevemos. A exposição 7 FORMAS POÉTICO-CASUÍSTICAS estabeleceu, assim, os seus próprios pressupostos e critérios: unir pessoas e projetos e questionar a escultura enquanto disciplina. São os artistas que unem e é através das suas produções que colocamos as questões. Como unem? Ana Almeida Pinto, João Carqueijeiro (e o Grupo em Construção do seu atelier), Juan Coruxo, Luís Canário Rocha, Miguel Neves Oliveira, Pedro Figueiredo e Raúl Ferreira partem dos livros, dos poetas e dos poemas, que, nesta narrativa expográfica, ocupam o lugar do sagrado em contraste com as obras de arte que são colocadas na interação direta com os públicos. As Artes e as Letras entram em circuito vicioso e contagiam-se. Voltando a Adorno, as obras de arte não devem ser compreendidas pela estética como objectos hermenêuticos; na situação actual, haveria que apreender a sua ininteligibilidade.5 Ou, como aponta Barilli, podemos ler um qualquer poema, ou recolha lírica, ou romance com uma certa indiferença pelo formato do livro, o corpo, os caracteres escolhidos pelo editor; [contudo] a obra literária não renunciará a apresentar, a encenar, a dramatizar o caráter problemático e incerto que surge exatamente no nosso “vivido”6. A relação aos poetas e às suas palavras apoia, subjetivamente, o leitor/contemplador na apreensão da obra de arte. Por partes. Breve enquadramento.

Ana Almeida Pinto (n.1984) é licenciada e mestre em Artes Plásticas – Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Expõe individual e coletivamente desde 2007 e em 2017 venceu duas Menções Honrosas: uma na 4ª Bienal Internacional Mulheres D’Artes, Espinho, com a obra “Geração Arrasta_2015” e outra na 2ª Bienal Internacional de Gaia, com a obra “Resistência (da Solitude)_2017”. Tem sido assídua a sua participação em residências artísticas e como dinamizadora de workshops e outras atividades de caráter pedagógico. Ana Almeida Pinto acredita na abrangência da escultura e nas suas múltiplas ligações. Pensa e trabalha a fisicalidade no processo escultórico, enquanto ato, pensamento, perceção e contemplação. Nesta exposição, propõe-nos um conjunto de obras em que explora o xisto (na sua relação com o ferro), recorrendo a técnicas da cerâmica e debatendo-se com as imposições inerentes às características naturais da matéria. A série “Resistências” parte de Alexandre O’Neill (1924-1986) e do poema “Um Adeus Português”.

João Carqueijeiro (n.1954), através do domínio da técnica da cerâmica, há muito que se elevou à condição de escultor. Nas suas obras descobrimos as texturas e as cores da matéria em formas ambiciosas e que o artista procura que interpelem o espaço e coloquem sucessivos desafios ao espectador. João Carqueijeiro concluiu o Curso Superior de Desenho na Cooperativa Árvore (ESAD), em 1982, sob orientação do mestre Sá Nogueira e especializou-se em Roda de Oleiro, Vidrados de Grés e Raku, na Escola de Cerâmica de La Bisbal, na Catalunha. Desde 1981 que se dedica ao ensino da cerâmica, quer no âmbito da Formação Profissional, quer de Cursos de Especialização, Orientação de Estágios, Workshops, Cursos Livres, acreditado pelo Conselho Científico-Pedagógico da Formação Contínua de Professores e pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional. Expõe desde 1986, em Portugal e além-fronteiras, mantendo atividade regular de dinamizador de atividades e eventos ligados à cerâmica. Encontramos painéis seus em Portugal e Espanha, podendo destacar-se o painel cerâmico em relevo de 0,75 x 100 x0,05 metros, para exterior do Crowne Plaza Hotel em Vilamoura. Artista premiado, a sua obra integra coleções de museus em Portugal, na China ou no Japão. Apresenta-nos uma instalação, produzida no seu atelier na Senhora da Hora, em Matosinhos, onde se respira o ambiente da produção cerâmica, tecnologia que dá resposta à criatividade e ao gesto deste que é por muitos considerado o maior ceramista português da atualidade. É neste mesmo local que realiza workshops e incentiva à criação de projetos protagonizados por outros. É neste contexto que surge o Grupo em Construção (constituído por Ana Riobom, Arménia Vasconcelos, Arminda Garrido, Cecília Côrte-Real, Edgar Moreira, Eduarda Coquet, Fátima Figueiras, Fernanda Figueiredo, Inês Almeida, Isabel Bonifácio, Isabel Sousa Ribeiro, Luís Colares, Manuela Silva, Mariana Tenreiro, Marta Maia, Mavilde Gonçalves, Nuno Ferreira, Olga Leite e Raquel Quelhas) que apresenta porque não azul?, uma peça que integrará um conjunto de azulejos numa estrutura feita de malha–sol proveniente do parque de materiais do dst group. João Carqueijeiro parte de António Ramos Rosa (1924-2013) e do poema “Cada árvore é um ser para ser em nós”. O Grupo em Construção parte de António Gedeão (1906-1997) e do poema “Aurora Boreal”.

Juan Coruxo (n.1961) é natural da Galiza, de Vigo e a sua incursão no meio artístico tem sido resultado de uma enorme persistência e generosidade. O seu material de eleição é o ferro que aprendeu a dominar, uma vez que, profissionalmente, exerce funções como técnico numa metalúrgica. Desde o início da sua carreira (1995), tem sido um colaborador habitual de distintos artistas, ibéricos e de outras proveniências internacionais. A partir de 2000, as suas obras ganharam um estilo próprio cada vez mais aperfeiçoado, marcadamente abstrato, ainda que com sugestões formais autobiográficas. Tem participado em exposições individuais e coletivas e as suas obras integram já diversas coleções particulares e institucionais. Parte de Rosalía de Castro (1837-1885) e de um excerto de “O Toque da Alba” que o remete para o tema dos incêndios do Verão de 2017 que têm marcado a sua produção mais recente.

Luís Canário Rocha (n. 1986) é natural de Guimarães e fez a sua formação académica em pintura na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. A influência da Academia e dos seus métodos faz-se sentir no traço virtuoso, por um lado e, por outro, no processo de investigação experimental. Ao longo dos últimos anos, tem vindo a desenvolver um conjunto de trabalhos de forte influência neoexpressionista e, em particular, do americano Jean-Michel Basquiat (1960-1988). É aliás curiosa esta associação ambiental àquele que é considerado o artista que inventou o conceito de arte urbana, hoje institucionalizada. Luís Canário Rocha pertence a uma geração de artistas que aplica a aprendizagem da academia à intervenção urbana, devolvendo ao desenho e à construção do real, espaço privilegiado. Da rua e das linguagens de intervenção urbana, traz a paleta viva, as palavras (repletas de conotação social e política) que povoam o suporte e os temas. A evolução que se tem verificado na obra de Luís Canário Rocha, nos últimos anos, revela-nos, ainda, a adesão a uma das tendências da pós-modernidade artística: a dessacralização dos suportes, recorrendo aos reutilizáveis. Neste caso, destacam-se os trabalhos em e sobre madeira da série cidades. Estas cidades, imaginadas, remetem-nos para cenários conhecidos de viagens reais ou virtuais mas, sem dúvida, envolvem-nos no ambiente cosmopolita e denso dos nossos dias. Da visão das cidades, o seu trabalho evolui agora para a apreensão dos detalhes, surpreende-nos com o estendal, cena caricata do quotidiano dos centros históricos que marcam o seu ADN. Parte de Ary dos Santos (1937-1984) do poema “A Cidade”.

Miguel Neves Oliveira (n.1980) expõe desde 2000. Contudo, o escultor cresceu entre o ruído da matéria natural da qual brota a vida que se torna arte. A sua formação é, em parte, empírica e vocacional e é sua simplicidade que faz dele um artista cujo talento se tem evidenciado e sido merecedor da aposta da zet gallery. O artista tem na madeira o seu material de eleição, contudo permanece aberto a novas descobertas e às potencialidades de materiais como o ferro, mantendo a aplicação de uma paleta de influência no universo da pop que define o resultado visual do seu trabalho. Voltando a Adorno, a relação com o Novo tem o seu modelo na criança que busca no piano um acorde jamais ouvido, ainda virgem. Mas, o acorde existia já desde sempre, as possibilidades de combinação são limitadas; na verdade, já tudo se encontra no teclado. O Novo é a nostalgia do Novo, a custo ele próprio; disso enferma tudo o que é novo. O que se experimenta como utopia permanece algo de negativo contra o que existe, embora lhe continue a pertencer.7 Recentemente, Miguel Neves Oliveira aproximou-se do ferro e no regresso à madeira aprimora-se a sua relação à natureza e torna-se ainda mais leve a paleta que aplica às suas formas. A obra de arte expande-se, cresce em ambição, ocupa o espaço. Nas letras, partiu de Henry David Thoreau (1817-1862) e de um excerto de “Maças Silvestres & Cores de Outono”.

Pedro Figueiredo (n.1974) é um produto da oferta de ensino artístico do centro do país. Concluiu o curso profissional de Cerâmica na Escola Artística de Coimbra (ARCA, E.A.C.), a licenciatura em Escultura, a pós-graduação em Comunicação Estética e o Mestrado em Artes Plásticas na Escola Universitária das Artes de Coimbra (ARCA, E.U.A.C.). Expõe individualmente desde 2000 e a sua obra é protagonista do espaço público e integra coleções públicas e privadas das mais relevantes a nível nacional e internacional (com destaque para coleções em Espanha e Cuba). Artista premiado, as suas obras provêm de um imaginário surrealizante e surpreendem-nos tecnicamente e pelo convite à construção criativa de sonhos. A obra escultórica de Pedro Figueiredo, apesar de figurativa, afasta-se da representação do real, remetendo-nos para um universo de sentimentos ou circunstâncias onde as associações são livres. Trata-se de escultura em parte conceptual, ainda que o conceito não seja o seu foco criativo. Os seus corpos esculpidos (formalmente humanos) são prospeções de conceitos que o artista parcialmente revela através dos títulos das peças, ora quase místicos e misteriosos, ora facilmente relacionáveis com a forma que vemos. Recorrendo à simplicidade, à desproporção e à distorção, presenteia-nos com figuras exageradamente verticais ou horizontais, assentes em pés ou mãos basilares que se salientam do restante organismo devido a uma presença agigantada e algo primitiva. Os seus trabalhos são sobretudo executados em resina de poliéster, bronze e grés cerâmico. Parte de João Mendes Rosa e de um excerto de “tecido vago doutras horas”. É, aliás, do discurso de João Mendes Rosa, também diretor do Museu Regional da Guarda, que se extraem parte das palavras que servem a narrativa sobre o artista.

Raúl Ferreira (n.1975) é licenciado em pintura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto e alia a sua atividade como artista plástico ao exercício da docência. Expõe desde a década de 1990, individual e coletivamente. Na série Avesso, nas palavras do artista, revela a sua insatisfação com os limites tradicionais da pintura. Dessa insatisfação, surge um conjunto de objetos instáveis e em constante desequilíbrio, nos quais sobrevive a revelação dos métodos mais tradicionais de construção. A pintura monocromática, quase neutral, justifica-se para evidenciar o ritual do ato de construir/desconstruir. A tela é quebrada, cortada e dobrada numa encenação que procura encontrar uma outra narrativa, uma outra identidade, o seu lugar. Parte de Miguel Torga (1907-1995) e do que, também, sobreviveu de “Ignoto”. A escolha sui generis é sintomática do seu recato e perfil.

Como disse Friedrich Nietzsche (1844-1990) temos a arte para não morrer da verdade. Desta feita, os artistas e os poetas salvam-nos da crueza dos dias. As formas que ora integram esta exposição são assim casualmente poéticas pois, como se disse, as letras da poesia (e alguma prosa) somaram-se às obras dos artistas que já queríamos, que já havíamos escolhido. Com a casualidade em torno da forma poética ligamo-nos ao mundo, à cidade. Voltando a Croce e com ele concluindo: a arte é uma verdadeira síntese a priori estética, de sentimento e imagem na intuição, da qual se pode repetir que o sentimento sem a imagem é cego e a imagem sem o sentimento é vazia.8

1 ALMEIDA, Onésimo Teotónio – A Obsessão da Portugalidade. Lisboa: Quetzal Editores, 2017. Páginas 245 e 246.

2 ADORNO, Theodor W. – Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008 (2ª edição). Página 59. .

3 SARDO, Delfim – O Exercício Experimental da Liberdade: Dispositivos da arte no século XX. Lisboa: Orfeu Negro, 2017. Páginas 140 e 143.

4 CROCE, Benedetto – Breviário de Estética. Lisboa: Edições 70, 2008. Página 71.

5 ADORNO, Theodor W. – Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008 (2ª edição). Página 181.

6 BARILLI, Renato – Curso de Estética. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. Páginas 67 e 68.

7 ADORNO, Theodor W. – Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 2008 (2ª edição). Páginas 57 e 58.

8 CROCE, Benedetto – Breviário de Estética. Lisboa: Edições 70, 2008. Página 38.

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