Cicatriz.

por Sandra Baía

A simples proposição de uma “Ciência do Belo” devia ser fatalmente invalidada pela diversidade de belezas produzidas ou admitidas no mundo e na duração.[1]

Poder-se-ia dizer que, ao longo da História da Arte, a beleza obedece a um padrão, a um ideal clássico e, em certo sentido, a um sentido bucólico e poético da vida. Na sua “História da Beleza” (2002), Umberto Eco (1932-2016), percorre o tempo e o espaço, sobretudo do dito Ocidente, historiografando como os artistas, os poetas, nos contaram sobre o que consideravam belo e nos deixaram exemplos disso, apresentando “uma história da Beleza e não uma história da Arte (ou da Literatura ou da Música); para citarmos depois as ideias que foram sendo expressas sobre a Arte, mas apenas quando relacionam Arte e Beleza”[2].

Trata-se de uma história da Beleza unicamente documentada através de obras de Arte. Contudo, refere também o autor italiano, que “à medida que nos aproximamos da modernidade, poderemos dispor também de documentos que não têm fins artísticos, de mero entretenimento, de promoção comercial ou de satisfação de pulsões eróticas, como imagens que nos chegam do cinema de massas, da televisão e da publicidade”[3], considerando que ajudam a compreender e captar o ideal de Beleza num determinado momento.

O Facebook surge em 2004, evoluindo de uma rede social anterior, também criada por Mark Zuckerberg, então estudante de computação em Harvard, o “Facemash”. 20 anos depois o Facebook alcança cerca de 2 biliões de utilizadores ativos por dia, não sendo já a única ferramenta da sua tipologia, mas uma num universo virtual que inclui o YouTube, o Instagram, o WhatsApp, o X (antigo Twitter) ou o TikTok, sendo umas de maior exposição da imagem do que outras, mas tendo todas em comum o facto de terem transformado as nossas vidas, as dinâmicas sociais e de nos permitirem criar uma imagem exterior que corresponde, nem sempre a quem e ao que somos, mas a quem e a como queremos ser.

Com as redes sociais, inventaram-se novas profissões e modelos de negócio, enquanto se alterou a forma de fazer política ou de ser ativista. Por outro lado, também nos permitem estar conectados com um número muito maior de pessoas, nos quatro cantos do mundo, comunicar mais facilmente e tornar quase incomensurável a fama e os fãs.

Nos pratos da balança, será difícil pesar prós e contras, sendo inegável que é urgente uma regulação e, sobretudo, um combate ao discurso de ódio, ao populismo e à desinformação e a adoção de estratégias que nos ajudem a reduzir o impacto que a atual falta de controle provoca em crianças e jovens, nomeadamente, no que diz respeito à beleza e aos seus padrões, fazendo-nos sentir que estamos sempre aquém de um ideal, de um estereótipo. Dados de 2020 da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética (ISAPS), davam-nos conta de um aumento de 141% no número de adolescentes que recorrem à cirurgia plástica, comparando com o ano de 2019, sendo o descontentamento com a imagem e a falta de autoestima uma das principais causas de ansiedade e depressão nesta faixa etária.

Mais de 20 anos depois do seu lançamento, a “História da Beleza” de Umberto Eco teria, necessariamente, que refletir sobre o efeito das redes sociais na padronização da beleza, mergulhando, provavelmente, numa controvérsia, impossível de resolver, sobre como pode a Arte ter um efeito positivo no combate à pressão negativa criada pelos novos media. Em “O Império do Efémero” (1987), ainda mais distantes do fenómeno, Gilles Lipovetsky (n.1944) escrevia, numa espécie de premonição do presente:

Também o demónio dos media, que a partir de agora faz correr artistas, jornalistas, escritores, patrões e toda a espécie de gente, não deve ser entendido como sinal da preponderância da obsessão do Outro, mas muito mais como autopublicidade, gozo narcísico de aparecer no ecrã, de ser visto por numerosas pessoas, desejo de ser amado e agradar, mais do que respeitado e estimado pelas próprias obras: Narciso prefere seduzir a ser admirado, quer que falem dele, que se prendam a ele, quer ser mimado.”[4]

Ou como dizia a canção: “É que Narciso acha feio o que não é espelho.[5]

Cicatriz.” é, não digo a primeira, mas talvez a mais importante e representativa exposição individual de Sandra Baía (n.1968) porque dá à sua produção artística recente uma hipótese de leitura que a enquadra, não na grande pergunta sobre “O que é a Arte?”, mas antes na questão de Eco, “O que é a Beleza no século XXI?”. A reflexão é urgente e não deixa de vir revestida de contraditórios pois, simultaneamente, nunca como hoje vivemos um tempo de defesa tão profunda de direitos, liberdade e garantias, que tem nas escolhas individuais e na construção da equidade vetores essenciais.

Falamos da importância do esclarecimento e normalização de conceitos como orientação sexual e identidade de género, somos feministas sem moderação, combatemos o body shaming e o assédio sexual, defendemos o não julgamento pelas aparências, pelos credos e pelas origens de cada um, mas, depois, tornamo-nos reféns de modelos e padrões físicos preconizados pela família Kardashian (recorrendo ao exemplo citado por Sandra Baía na entrevista transcrita neste catálogo) e não conseguimos lidar com a nossa dependência de um ideal de perfeição que nos diz que não há espaço para as normais consequências de uma gravidez, da idade ou de uma cicatriz que a vida nos trouxe. Queremos ter o corpo e a vida glamorosa daquela influenciadora e não conseguimos evitar a frustração pelo facto de realidade e ficção se misturarem, aos nossos olhos, enquanto fazemos um scroll sem culpas e sem noção.

A história de vida de Sandra Baía adensa esta narrativa e intensifica as camadas que, consciente ou inconscientemente, adicionou à sua produção artística da última década, não obstante a aparência minimal das obras que apresenta. Sandra Baía começou o seu percurso profissional na área da moda, como modelo internacional, tendo vivido e trabalhado entre Paris, Londres ou Nova Iorque.

A sua geração é a geração do estigma da magreza, do 86-60-86 e essa pressão não só a marcou como terá ditado que encurtasse o prazo de validade da carreira com a maternidade, por volta dos 28 anos. Descobre, nas memórias que as mãos e a mente guardam da infância e da adolescência, a sua vocação artística e começa por procurar formação no campo das artes plásticas.

É na pintura que inicialmente se encontra e é com a pintura que escreve as primeiras linhas do seu currículo como artista. Viria a abandonar a pintura depois de uma grande e bem sucedida exposição em Los Angeles, EUA, percebendo que lhe faltava a urgência e a brutalidade da matéria e a ação do corpo sobre o que vem da indústria, transformado o perfeito, pela catarse, em deformação.

Perfeição e beleza são conceitos altamente subjetivos, numa subjetividade que nem as múltiplas definições de Arte ultrapassam. Não obstante, e muito influenciada pela frequência de um atelier em Cascais, situado em ambiente fabril, Sandra Baía inicia um processo de pesquisa em redor de materiais e tecnologias industriais, procurando a sua forma bela.

Prefere o metal e a sua cromatização através de um processo de pintura eletrostática a pó (que conhecemos da utilização pela indústria automóvel), dando à matéria bruta um efeito, por vezes aveludado, por vezes em efeito espelho, que lhe cria o contrasta, que a complexifica na mensagem. O trabalho é sempre experimental e, sem saber explicar quando ou onde, um dia a marreta liberta a força na perfeição da forma e começa a deformá-la e a deformar o nosso reflexo nela. Somos desafiados e ver-nos numa espécie de espelho que assustaria Narciso, sem sermos como somos, mas até onde aguentamos ver-nos.

Obras como “Map I (Black, Green)”, “Map II (Orange, Green)”, “Almofada (I)”, “Almofada (II)”, “Mutual excitement”, “II Bolas”, “Gooseberry | Dark Orange | Blue”, “Yellow” ou “Dark Orange”, na sua maioria inéditas, são exemplos destas variações de processo, da procura do encaixe e/ou desconexão, da fuga ao literal, do encontro com o disforme e com o reflexo, do jogo da imagem.

Em “A Salvação do Belo” (2015), o coreano Byung-Chul Han (n.1959) escreve-nos, citando a “Teoria Estética”[6] de Theodor Adorno (1903-1969):

A negatividade da quebra é constitutiva do belo. É por isso que Adorno fala de uma coerência “antagónica e quebrada”. Sem a negatividade da quebra, o belo atrofia-se no liso e no polido. Adorno descreve a forma estética recorrendo a formas paradoxais. A sua harmonização consiste em “não estar em ordem”. Não é livre de divergências nem de contradições”. A sua unidade rompe-se. A sua unidade rompe-se. Vê-se interrompida “através do seu outro”. O coração do belo está quadrado.[7]

O mesmo autor, persegue na reflexão especulativa, desta feita, recorrendo a Hegel (1770-1831).

O belo promete liberdade e reconciliação. Os anseios e os imperativos desaparecem na presença do belo. É por isso que torna possível uma relação livre com o mundo e do sujeito consigo mesmo. A estética hegeliana do belo opõe-se diametralmente ao regime estético atual. A calocracia neoliberal gera imperativos. O botox, a bulimia e as cirurgias estéticas refletem o seu terror. O belo, antes de mais, tem de suscitar estímulos e captar a atenção. A própria arte, que é inalienável segundo Hegel, está hoje por completo submetida à lógica do capital. A liberdade da arte subordina-se à liberdade do capital.[8]

“Cicatriz.” de Sandra Baía é o elogio ao imperfeito, sendo o nosso corpo, marca do vivido, do que se superou, do que se aproveitou. “Cicatriz.” de Sandra Baía é, como hipótese, a crítica à prisão da autoimagem em que as redes sociais nos colocam e é, acima de tudo, o belo absoluto que só a Arte atinge.

Ainda que em fuga, talvez haja no processo de Sandra Baía um subconsciente espiritual que a levou, talvez, a escolher 13 obras para esta exposição. Sorte, azar, coragem ou recomeço são simbologias do número. Ainda a preferência pelas formas concêntricas e pela exploração das tipologias do metal através do exercício da circularidade, como vemos em “Map I (Black, Green)”, “Map II (Orange, Green)”, “II Bolas”, “Around we go”, “Taking Care of The Empty” ou mesmo “Vanity Splendor”, ainda que esta última nos introduza mais na narrativa em hipótese, ou seja, no contexto de digitalização da nossa vida social e nos remeta para a importância que a palavra, os títulos, vão ganhando na crescente conceptualização que a artista dá à sua obra.

A vulgarização das videochamadas/videoconferências durante o período pandémico, trouxe-nos também a novidade de nos vermos enquanto falamos com os outros, o que ampliou um mercado de produtos e aplicações que têm como objetivo melhorar a nossa imagem, a nossa autoimagem. O teletrabalho vulgarizou a utilização das Ring Light, as lâmpadas led em forma de anel que melhoram a nossa (auto)aparência à luz de qualquer câmara de um computador. Na obra “Vanity Splendor”, produzida no enquadramento das conversas que mantivemos enquanto pensávamos esta exposição, utiliza 24 destas lâmpadas numa estrutura em alumínio que alude para os espelhos de camarim de estrela de Hollywood, ao jeito contemporâneo. A rebeldia do objeto, com a cablagem à vista, contrasta com o esplendor da vaidade que elogia e/ou critica.

A curiosidade e o interesse por explorar novas possibilidades do tempo contemporâneo, caracterizam Sandra Baía. Neste sentido, a obra “Wandering amidst the hush” (“Vagueando pelo meio do silêncio”) resulta de uma parceria com a Inteligência Artificial, nomeadamente na definição da frase que intitula a obra e que é o corpo base do trabalho. A artista promoveu um diálogo com a máquina, e de uma troca de perguntas e respostas sobre pensamentos da artista, resulta esta frase, em jeito de síntese de pensamentos e sentimentos complexos, não da máquina, mas da artista. Esta obra, outro dos inéditos de “Cicatriz.”, abre o debate sobre a Inteligência Artificial, nas suas múltiplas variações, enquanto ferramenta, sendo importante refletir sobre os desafios e novas hipóteses que coloca à produção artística, nunca substituindo o que é único do Ser Humano, mas abrindo possibilidades.

Em “Cicatriz.” de Sandra Baía é indispensável que se coloque o ponto final (.) depois da palavra porque num tempo de celebração da absoluta diversidade de Seres Humanos, de lutas pela Liberdade de cada um ser, exatamente, aquilo que deseja, o belo é múltiplo e depois de uma cicatriz, de uma marca que a vida nos deixou, recomeçamos (na simbologia do 13) e assumimos que temos essa cicatriz e que ela faz parte do ser único que somos. Não como defeito ou disforma, mas como parte, como identidade. Ponto.

Helena Mendes Pereira

 

[1] VALÉRY, Paul. La invención estética y otros escritos sobre arte. Casimiro libros, 2018. Página 46.

[2] ECO, Umberto (2002). História da Beleza. Círculo de Leitores, 2005. Página 10.

[3] ECO, Umberto (2002). História da Beleza. Círculo de Leitores, 2005. Página 12.

[4] LIPOVETSKY, Gilles (1987). O Império do Efémero. Publicações Dom Quixote, 2010 (2ª edição). Página 339.

[5] Verso de “Sampa” (1978) de Caetano Veloso (n.1942).

[6] ADORNO, Theodor W. (1970). Teoria Estética. Edições 70, 2013 (2ª edição).

[7] HAN, Byung-Chul. (2015). A Salvação do Belo. Relógio D’Água, 2016. Página 57.

[8] HAN, Byung-Chul. (2015). A Salvação do Belo. Relógio D’Água, 2016. Páginas 70 e 71.

Comments

comments