first impressions
O historiador inglês Samuel Purchas (1575-1626), afirmou que a História tem dois olhos: a geografia e a cronologia, ou seja, o tempo e o espaço são imprescindíveis fontes para a construção e compreensão da memória coletiva. A História é a escrita oficial da memória coletiva, consequente de constantes palimpsestos.
No dia 24 de fevereiro de 2022, tropas russas invadiram a Ucrânia, dando início a uma guerra, às portas da Europa, que tem provocado danos humanos e materiais irreparáveis, com consequências diretas a nível global, mas, em primeira instância, para o povo ucraniano. A comunidade internacional, uma boa parte dela, mobilizou-se em solidariedade com a Ucrânia e com o seu povo, nomeadamente em políticas de acolhimento de refugiados cujo volume cresce dia após dia.
No dia 8 de março de 2022, Dia Internacional da Mulher, a zet gallery e o dstgroup lançaram uma open call para a atribuição de bolsas de residência artística, nos moldes já amplamente difundidos, para mulheres ucranianas com a intenção de continuar a produzir a História da Arte do seu país. Recebemos mais de meia centena de candidaturas e, a partir de abril de 2022, começamos a acolher as artistas e, em alguns casos, as suas famílias.
Yevheniia Antonova (n.1986), Margaryta Alfierova (n.1972), Oleksandra Skliarenko (n.1998), Hanna Kyselova (n.1976) e Nataliia Diachenko (n.1988) vieram de diferentes cidades da Ucrânia e as suas histórias cruzam-se no momento em que se sentem impelidas a abandonar o seu país e que, depois, se encontram e conhecem em Braga para trabalhar connosco, para recomeçar. As suas práticas artísticas deambulam entre a pintura, a ilustração, a fotografia ou a escultura e os seus currículos divergem na extensão e no caminho percorrido até aqui.
first impressions é um ambicioso e emotivo projeto curatorial onde apresentamos as primeiras obras por elas produzidas em Portugal, resultantes dos seus processos de adaptação, aprendizagem, investigação e descoberta. Esta exposição não é uma viagem. É, antes, um tempo parado na curva dos dias que correm, mas não passam. É feita das primeiras impressões, do que cada coisa diz sobre o que se sente.
Quis retomar seu caminho sinuoso na obscuridade, mas esquecera seus passos com a vertigem de uma rosa branca. Esquecera em que lugar seu corpo ajeitara-se para poder estranhar. Restava um sentimento indeciso como uma promessa de revelação… algum dia em que ela quisesse com verdadeira força real… ah se tivesse tempo. Mas quando teria ela na vida um cuidado tão potente que a fizesse conseguir por desejo aquilo que lhe viera tão misteriosamente espontâneo. Restara-lhe uma sensação de passado. Subitamente só sabia que algo sucedera porque ela própria numa prova material existia agora sentada na poltrona. Recomeçou a viver do fato de estar sentada na poltrona em diante.[1]
Clarice Lispector (1920-1977) nasceu na Ucrânia que, então, estavas em via de integração na URSS. Os pais eram judeus e o seu nome de batismo Chaya Lispector. A família de Clarice Lispector foi vítima dos pogroms, particularmente intensos a partir de dezembro de 1918. Pogrom é uma palavra russa que significa “causar estragos, destruir violentamente”. Historicamente, o termo refere-se aos violentos ataques físicos da população em geral contra os judeus, tanto no império russo como em outros países. Acredita-se que o primeiro incidente deste tipo, a ser rotulado como pogrom, foi um tumulto antissemita ocorrido na cidade de Odessa em 1821. Como termo descritivo, a palavra “pogrom” tornou-se de uso comum durante as grandes revoltas antissemitas que aconteceram na Ucrânia e no sul da Rússia, entre 1881 e 1884, após o assassinato do Czar Alexandre II.
Durante o período do nazismo na Alemanha e no leste europeu, assim como havia acontecido na Rússia Czarista, os pretextos para os pogroms eram ressentimentos económicos, sociais e políticos contra os judeus, reforçando o antissemitismo religioso. Foi para fugir à devastação da guerra civil que os Lispectors emigraram para o Brasil em 1922, fixando-se em Maceió, no Recife e depois, em 1930, no Rio de Janeiro, no seguimento da mãe. O pai havia de falecer em 1940. Clarice decidiu aos 13 anos que queria ser escritora. Estudou direito e cedo começou atividade como jornalista na Agência Nacional.
Em 1943, influenciada pelas leituras de Espinosa (1632-1677), tinha escrito e publicado “Perto do Coração Selvagem”, obra que agitou a literatura brasileira da época, dominada pelo realismo de Érico Veríssimo (1905-1975) e Jorge Amado (1912-2001). A discussão estética (e política) neste período fazia-se, precisamente, entre o realismo, a abstração e o surrealismo. Durante o casamento com Maury Gurgel Valente, viveu em diversas cidades dos EUA e da Europa e teve dois filhos. Maury era diplomata. Separa-se para poder regressar ao Brasil onde, apesar de já ser uma escritora de culto na sequência dos vários títulos publicados, atravessa dificuldade financeiras, apenas superadas com a escrita das crónicas no Jornal do Brasil. Neste período, sofre graves queimaduras num incêndio no seu apartamento e a esquizofrenia agrava-se.
Clarice escrevia para salvar a vida de alguém, como a própria referiu, num percurso marcado por perdas. Ao longo de toda a sua carreira deu apenas uma entrevista em televisão, em 1977, encontrando-se já gravemente doente. O Rio de Janeiro tornou-se na sua cidade, mas a sua beleza luminosa e inacessível era de outra parte, uma parte que se manteve no seu sotaque, nunca assimilado pelo ritmo do português do Brasil.
A história de Clarice Lispector interessa-nos, particularmente, porque é exemplo das mutações do mundo e do facto de a História se fazer de migrações e mudanças. Não somos, rigorosamente, de parte nenhuma e se investigarmos vamos, provavelmente, descobrir que temos antepassados e origens distantes e distintas, mas as únicas capazes de explicar o ser único que é cada um de nós. Migrar não é, na maioria dos momentos da história, um desejo, mas uma escolha que somos obrigados a fazer em prol da sobrevivência, da busca de uma vida melhor. As palavras de Clarice Lispector são, portanto, o detonador de uma instalação artística comum, memory machine, em que tentamos trazer, ao ruído do tempo, alguns dos momentos que vivemos, nesta que tem sido uma aprendizagem coletiva e de valorização do que realmente interessa.
Portugal e o Brasil têm, nas suas Histórias, outras personalidades de origem ucraniana e que acabaram por marcar a vida e arte dos seus países. Talvez seja por isso que a afinidade entre os povos se note, como um laço de sangue que não se explica. O arquiteto Gregori Warchavchik (1896-1972) nasceu em Odessa, chegando ao Brasil de 1923, depois de uma passagem por Roma. Faz parte da importante geração de arquitetos do modernismo brasileiro e é, em concreto, o autor da primeira Casa Modernista do Brasil, situado na Vila Mariana, em São Paulo.
Sónia Delaunay (1885-1979) nasceu no seio de uma família judaica da Ucrânia, ainda pertencente ao Império Russo. Viveu e estudou em São Petersburgo, mantendo sempre um apego muito forte às paisagens do interior ucraniano que viria a reconhecer em Portugal. Viajou pela Europa e fixou-se em Paris e, em 1909, conhece Robert Delaunay (1885-1941) com quem viria a casar em segundas núpcias. Têm um filho.
No contexto da I Guerra Mundial, em 1915, fogem para Portugal e instalam-se em Vila do Conde. Conviveram com Samuel Halpert (1884-1930), russo também radicado no nosso país, com Eduardo Viana (1881-1967), com Amadeo de Souza Cardoso (1887-1918) – sendo que estes dois últimos conheciam dos tempos de Paris – e com José de Almada Negreiros (1893-1970), tendo desenhado todos juntos uma parceria artística que é fundadora do modernismo português. Sónia Delaunay deixou-se encantar pelas paisagens, cores e gentes do Minho, que reproduziu e interpretou nas suas obras.
A plasticidade e a estética da obra de Sónia Delaunay são a base para o trabalho que a ilustradora Margaryta Alfierova apresenta nesta exposição, partindo da paleta e das formas base para a construção de uma narrativa abstrato-utópica de apelo à Liberdade e às suas múltiplas visões. Foi já na combinação da frase “Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.” de Clarice Lispector com uma releitura da obra de Sónia Delaunay que a artista desenvolveu o projeto para a portão de entrada no atelier onde, desde a chegada a Portugal, a Braga e ao dstgroup, este grupo de artistas vai desenvolvendo o seu trabalho.
O percurso de Margaryta Alfierova tem sido feito na relação com os livros e com as estórias, dedicando-se a artista, fundamentalmente, à ilustração infantil. No percurso em Portugal, tem procurado novos caminhos para a sua prática artística, não deixando de combinar a pintura com a transformação digital da imagem, mas interessando-se pela construção de objetos em três dimensões e pela expansão do campo da pintura para uma quase cenografia. Na intimidade do desenho que se faz sobre a mesa, destacam-se a elegância na apropriação da estética de Sónia, que procurou libertar do espaço e do tempo do modernismo e dar um caráter de experimentalismo cósmico. É através dela que fazemos, também, uma ligação e uma homenagem a outros que, nascidos na Ucrânia, se tornaram vultos de menção internacional, exemplos do poder da arte sem fronteiras.
Hanna Kyselova é uma escultora com um percurso reconhecido na Ucrânia e além-fronteiras. A título de exemplo, durante o período de residência em Portugal, ausentou-se para participar num simpósio na Sérvia e numa residência artística de curta duração na Coreia do Sul. As suas formas têm uma inspiração nas imagens das histórias tradicionais, com especial foco para as fábulas entre animais e humanos.
No trabalho em metal, de maior escala e que despertou o nosso interesse na fase de Open Call, as figuras lembram os gigantones e têm uma imagética de parábolas no quotidiano. O interesse está, também, na pintura que depois incide sobre estas figuras e que lhes acentua um ar divertido e grotesco, simultaneamente. O tipo de figuração é, aliás, comum a muitas escolas artísticas dos países da ex-URSS, numa transição entre os modernismos amordaçados e comemorativos e o desejo da vanguarda que não se desvincula da estética tradicional.
Nestes primeiros meses em Portugal, Hanna Kyselova decidiu trabalhar o barro, mantendo as temáticas e estética referida, mas optando por uma tecnologia mais visceral e que lhe permite uma quase mutação entre o seu próprio corpo e a matéria. Nesta exposição, apresenta-nos esculturas de vulto redondo de médio porte, com narrativas inéditas e cuja exploração em muito contribuíram para que se adaptasse a este novo contexto e o apreendesse como, também, seu.
Nataliia Diachenko é fotógrafa e aceitou o desafio de trabalhar a partir dos contextos das fábricas, oficinas, laboratórios e centros logísticos do campus do dstgroup. Apreender o trabalho, mas, também, os momentos de convívio e partilha descontraída entre todos. Na visita à bysteel, empresa do dstgroup especializada na conceção/projeto, produção e montagem de estruturas metálicas, encontrou matéria-prima proveniente da fábrica Azovstal em Mariupol, cidade no sudeste da Ucrânia, cuja disputa foi um dos marcos da Guerra Civil no Leste da Ucrânia, em 2014 e que, em 2022, protagonizou um dos momentos mais sangrentos desta guerra. A sua localização geográfica na costa do Mar de Azove, na planície do Mar Negro, na foz dos rios Kalmius e Kalch, torna-a como estratégica.
Azovstal em Mariupol era um dos principais fornecedores de metal de vários pontos da Europa e do mundo e, no caso da bysteel, era dominante. A sua destruição é uma das causas da inflação destas matérias-primas. Talvez estejam em Braga os últimos vestígios do trabalho desta fábrica ucraniana e esta ideia, de uma realidade dissipada pela guerra, impactou Nataliia Diachenko.
Deste encontro, a artista começou a desenvolver um interesse pela construção de uma obra de arte que utilizasse estas chapas e evocasse a repetição de um triângulo numa composição que seria, simultaneamente, referente aos formatos geométricos do azulejo português do período clássico, da cerâmica que reveste os edifícios islâmicos (persas, sobretudo), que se assemelha a formatos das iluminuras ortodoxas da Europa de Leste e que, ainda, nos remete para semióticas comuns do triângulo, associadas ao feminino e ao sagrado.
Esta construção passou a ter um papel estrutural na definição do trabalho apresentado pela artista, que procurou refletir o ambiente do chão de fábrica, mas com foco na relação das matérias-primas com o espaço, na beleza das arquiteturas e na opacidade dos contrastes da tez industrial. As cerca de duas dezenas de fotografias apresentadas, impressas em metal para que se reforce a base da proposta, são a poesia da fábrica, os seus silêncios ocultos, os seus segredos. Mergulhar nestes cenários fez a artista viver entre o construído e o destruído, a ordem e o caos, a paz e a guerra.
A pintura de Yevheniia Antonova acontece como um processo de produção em estufa, com compressor e máscara de proteção. O degradê de cores nasce nas telas, de tendência concêntrica, num exercício de criação atmosférica de sonhos. Arriscaria afirmar que há uma quase recusa da abstração, considerando que o ato da estufa, o isolamento no atelier, é como a catarse da mente, o esvaziamento e a construção de uma nova possibilidade de universo.
A exposição da obra de Yevheniia Antonova vive também da relação com a luz e com o ambiente instalativo que o conjunto é capaz de criar. A artista pretende que os públicos tenham uma viagem na contemplação das suas obras, que se conectem com a essência da cor e o arrojo do belo. De uma coerência notável e com uma resiliência e espírito combativo notáveis, esta é uma artista capaz de recuperar o desprendimento e a poética neoexpressionista e gestualista de autores como Mark Rothko (1903-1970) ou Jackson Pollock (1912-1956), ao mesmo tempo que traz uma espiritualidade e uma leveza para a densa harmonia da sua pintura.
Oleksandra Skliarenko chegou a Braga com uma pequena máquina analógica e uma vontade enorme de se descobrir enquanto artista e enquanto mulher. Ao longo destes meses de trabalho, foi experimentando outros equipamentos, incluindo o digital, sendo que continua a preferir o analógico enquanto base. Há qualquer coisa em ser antigo nos hábitos que nos dá sempre a sensação de que conseguimos parar o tempo, fazê-lo abrandar. Experimentou a colagem e a adulteração da imagem resultante do olho na objetiva, procurando identificar relações entre corpo, cidade, matéria e cor.
Desafiamo-la, depois de lhe perceber a essência de andarilha, a interpelar a(s) cidade(s) e a tomar como ponto de partida “As Cidades Invisíveis” de Ítalo Calvino. Oleksandra Skliarenko captou rostos, momentos, sinais, transeuntes e ausências, começando a definir para as suas imagens um ambiente de influência psicadélica e de vida em movimento. Imagens sem narrativas de série, mas que, no conjunto, são o lado B da(s) cidade(s), são a artista em busca da sua Liberdade.
Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a descreve. E, contudo, entre eles há uma relação. (…) Se devo explicar-te de que maneira o espírito de Olívia tem a tendência para uma vida livre e uma civilização requintada, falar-te-ei de damas que navegam cantando de noite em canoas iluminadas por entre as margens de um verde estuário; mas é só para te recordar que nos subúrbios onde desembarcam todas as noites homens e mulheres como filas de sonâmbulos, há sempre quem no meio do escuro desate a rir, quem dê o sinal de partida às brincadeiras e aos sarcasmos. (…) A mentira não está no discurso, está nas coisas.[2]
Esta é a geografia e a cronologia da História da Arte ucraniana que queremos contribuir para que se continue a escrever. A História da Arte Contemporânea é interdependente da História do sistema da arte, do qual fazem parte os museus, as galerias, os curadores, o Estado, etc. Podemos, por isso, usar esse poder e fazer diferente. Está é, portanto, a nossa forma de fazer História com algo mais do que páginas sangrentas que os palimpsestos de cada um interpretam. Que para a memória coletiva também fique este tempo e espaço em que estivemos todos com o povo ucraniano. Arte contra a barbárie, sempre.
Helena Mendes Pereira
[1] LISPECTOR, Clarice – O Lustre (1946). Rio de Janeiro: Rocco, 2019. Página 110.
[2] CALVINO, Ítalo – As Cidades Invisíveis. Lisboa: Editorial Teorema, 1990 (2ª edição). Páginas 63 e 64.