HAVEMOS DE IR COM ELES AO FUTURO

“I said, ‘I wonder what it means’,

not ‘Tell me what it means.”

New Yorker Cartoons,

legenda de cartoon de Will McPhail, 2017

  1. Adriana Oliveira
  2. Alberto Rodrigues Marques
  3. Bruno Martins
  4. Daniela Pinheiro
  5. Diogo Nogueira
  6. Inês Neves
  7. João Campolargo Teixeira
  8. Leonor Gabriel Neves
  9. Manuel Fonseca
  10. Maria Luz
  11. Sérgio Rebelo
  12. Vier Nev

 

1.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará a ADRIANA OLIVEIRA,
esperando-nos ali, sentada na paragem junto aos correios de Guimarães, com um autocarro na ponta dos dedos, brincando com o que tira da sua última mala: maquilhagem, um prego, um berbequim. Desenhando, com tudo o que resta do fim do mundo, os seus quadrados mínimos sobre quadrados mínimos
sobre camadas e camadas de círculos maiores
onde leremos: exaustão.

2.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o ALBERTO RODRIGUES MARQUES,
esperando-nos ali, sozinho em palco: palco olímpico montado sobre estacas, sobre um oceano qualquer, e ele ali, pintando como se dançasse, desenhando como se nadasse tudo até ao fim para atravessar o azul e o vermelho
(não do mar, não do mar)
e, deste lado, informar-nos então sobre a resistência das plantas.
Sim, eu quero a flor.

3.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o BRUNO RODRIGUES MARTINS,
esperando-nos ali, num concerto de ondas médias, a voz de poetas aplaudidos aplaudindo a sobreposição de instrumentos naturais, velozes como baterias, sós como um baixo ventre, azuis e amarelos como o poente que separa o homem do mar, azuis e amarelos como as barreiras, como as bandeiras.
Se nos aproximássemos, veríamos também o sol.
Veríamos, na sua mão objectiva: uma lente e um precipício.

4.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará a DANIELA PINHEIRO,
esperando-nos ali, sentada num plinto de vidro, confundindo-nos os conceitos de arquitectura e de ginástica. E não sabemos se o que fará é discursar ou saltar sobre o tempo mais que imperfeito. E não sabemos se, ao sair, o plinto se quebra e se desfaz em dezenas e dezenas de cubos garridos, ou simplesmente se funde com a terra.
“No princípio, a diferença do fim”, diz-nos.
E amplia-nos um tapete de óleo sobre linho. Pausa.

5.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o DIOGO NOGUEIRA,
esperando-nos ali, abrigado da morte atrás de um biombo, dormindo com Franz Kafka sobre uma cama de livros, o grande insecto pintado de outra cor, a espreitá-los.
Ali, onde os mitos são cortados ao meio; ali, onde nada é pequeno: nem a sereia. Nem a metade da sereia. Nem a árvore sacrificada para o infinito boneco de madeira, para o biombo, para o retrato dos pais desolados de inverno, à espera que ele acenda a lenha para lhes queimar o frio.
Agasalhem-se, sim, agasalhem-se.

6.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará a INÊS NEVES,
esperando-nos ali, em Talín, enrolando e desenrolando fios nos braços esticados para Braga: fios eléctricos, fios de matéria têxtil, fios condutores.
A vida é dançar com um grande saco branco e nele desenhar cada linha em cada queda.
A vida é as rãs morrerem tanto como os homens mas os músculos de ambos reagirem à sua maneira. Perante a música, perante a dor.
A linha entre a Estónia e Portugal é transparente como um fio de pesca.

7.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o JOÃO CAMPOLARGO TEIXEIRA,
esperando-nos ali, num campo de basquetebol, de olhar flexível, sentado no chão como treinador de passos repetíveis. No colo, um caderno de esboços, uma caneta, lápis de cor. Mas, quando desenha, desenha palavras. Mas, quando desenha palavras, as palavras acendem-se. Mas, quando as palavras desenhadas se acendem, entramos nós, jogadores aflitos com a luz, à espera de um minuto treinado para ver o mar.
No centro do campo, ele sabe que, em dias especiais, o romance nos tira o sono.

8.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará a LEONOR GABRIEL NEVES,
esperando-nos ali, na praia, segurando-se a um túnel de luz ao fundo do túnel de luz. O túnel é branco. O fundo do túnel é azul e redondo e também branco, quando se fecha com o vento sobre si mesmo. O túnel não é estático, é preciso saber que o túnel é moldável. É preciso saber da possibilidade, por exemplo, de uma paisagem dividida como um piano, os socalcos definidos com régua e pastel verde.
É preciso saber que, se desenharmos o fundo de um túnel sobre a lona e o enchermos de carvão, fica apenas o túnel. Apenas o túnel, sem a luz.

9.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o MANUEL FONSECA,
esperando-nos ali, numa galeria de arte em Budapeste, esculpindo as malas para Lisboa com cera, papel, ferro. Quando se puser a caminho, talvez transporte as suas próprias raízes de mármore; talvez procure raízes debaixo da mesa maciça de trabalho; talvez as encontre ali, quando se puser a caminho. Antes de sair, de frente para o espelho, de costas para o mapa, verá que até a pele pode parecer de mármore se
o-espelho-está-demasiado-próximo.

10.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará a MARIA LUZ,
esperando-nos ali, sentada numa cadeira sobre uma cadeira sobre uma cadeira sobre uma cadeira. A sua cadeira elevadíssima por outras cadeiras, a sua cadeira em equilíbrio precário contra o tecto, longe do chão onde se sentou a desenhar a cadeira pela primeira vez. Lê o manual de limpeza para este século. Cá em baixo, pendurado na porta para a saída, deixou o saco azul: um saco antiquíssimo e gentil, sem subornos, sem vestígios de corrupção. No seu saco azul, guardou todo o material de pintura necessário para poder desenhar o saco azul.

11.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o SÉRGIO REBELO,
esperando-nos ali, dentro de um álbum de retratos que herdou dos seus avós, escapando-se ao papel, saindo de dentro do seu próprio retrato, rasgando os limites da sua própria fotografia e saindo para dentro da vida. Nos bolsos cheios de inteligência, estão retratos de ninguém. Nada de artificial em tudo isto: os retratos de ninguém são de ninguém; as palavras de ninguém são de ninguém; a alegria de ninguém é de ninguém; a angústia de ninguém é de ninguém.
Ninguém é sempre alguém.

12.
Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará o VIER NIEV,
esperando-nos ali, na poltrona preta ao centro do círculo. Deus a virar o círculo, a virar a poltrona, Deus debruçado da parte de cima do círculo. E nós cheios de fé na tecnologia de Deus, que nos dá o comando; e nós a comandarmos o círculo como se fôssemos Deus; nós a comandarmos a rega das plantas imaginárias de Deus; nós a comandarmos o céu no ecrã onde Deus irá, mais tarde, sentar-se na poltrona.

Filipa Leal

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