‘Para onde se dirige o artista?’ Por Ana Pais Oliveira

O melhor momento para descobrirmos e fazermos coisas novas dá-se, talvez, quando não estamos a pensar no que queremos descobrir e fazer, quando estamos a pensar numa outra coisa, distraídos do nosso centro e dos nossos propósitos e a assimilar contribuições de outros espaços e contextos. A reflexão inerente à prática artística pode ser absorvente, manipuladora do próprio artista e envolvida em constantes pausas, incertezas e impasses. Pode acontecer em processos circulares fechados que não chegam a lado algum para além do seu ponto de partida. Neste sentido, a viagem é fundamental: dando passos de dentro para fora, e depois observando de fora para dentro, o distanciamento criado pode ser um princípio para novas soluções. É neste contexto que talvez possamos enquadrar a investigação em arte e o seu impacto na própria produção artística, aquela que tem como objetivo fundamental regressar a si mesma, no final da viagem, munida de novas ferramentas. Quando o artista se situa num novo contexto e tem que encontrar a sua posição nesse ambiente mais ou menos conectado com a sua própria produção, poderá existir uma maior probabilidade de mudar de ideias, colocando a sua prática artística num outro lugar. Dificilmente avaliaremos este lugar como melhor ou pior, mas pretende-se, aqui, questionar o quão diferente ele é e que tipo de artista se constrói ou se transforma e modela num contexto académico. Entre os parâmetros e regras da academia e as especificidades do mundo da arte, terá o artista que privilegiar uns em detrimento dos outros? E onde se enquadram as noções de subjetividade e experimentação? Mediante a necessidade de falar e escrever sobre o seu trabalho, de o comunicar, que contextos escolhe o artista para se fazer ouvir e para se fazer ver? O que leva um artista, que quer continuar a sê‑lo, a dirigir-se ou regressar à escola de arte?

Victor Burgin (2009) afirmou que grande parte da rotina de trabalho de um artista é já um trabalho de investigação. Neste sentido, interessa questionar que variantes acarreta a produção artística envolvida no contexto académico e se o artista poderá criar uma melhor consciência do seu trabalho, um quase pensar melhor para que melhor o afirme e comunique. Um objeto artístico tem, na verdade, a capacidade ativa de constituir uma fonte sustentável de significado, valendo por si. No contexto académico, revelar paradigmas ou cenários da construção artística através de uma sistematização, procurar uma “base teórica para a intuição” (Emlyn Jones: 2009) ou fazer um uso instrumental da teoria podem constituir novos caminhos para a própria produção artística. Mas importa saber, como coloca Janneke Wesseling (2011), se esta condição de artista, que investiga ou procura para além dos seus mecanismos básicos de criação, cria um novo “tipo” de artista, eventualmente mais envolvido com a teoria. Na criação do papel de artista-investigador, se assim se pode chamar, o que acontece ao ato criativo?

Uma parte significativa da rotina de trabalho de um artista passa, na verdade, pela pesquisa. Podemos chamar-lhe investigação, mas a palavra ocupa muito espaço e este é necessário para a prática e a experimentação, para um fazer que, de modo consciente ou não, se serve desse processo correlacional de reflexão e pensamento. Investigar, como ato de procurar, estudar, analisar e explorar, e essencialmente como ato de aprofundar, é uma ação e uma realidade implícita na prática artística. O que interessa, então, perceber, é o que distingue o artista que insere voluntariamente a sua prática artística no contexto académico e que, por isso, exponencia a relevância de comunicar esse processo de reciprocidade entre pensamento e ação, daquele que não o faz, não querendo ou não precisando. Havendo essa necessidade, e sendo esta alheia a fatores ou exigências externas e intrínseca às especificidades do trabalho artístico, para onde se dirige o artista? O que faz um artista que, muitas vezes, se sente envolvido e limitado num circuito fechado, reincidente e repetitivo, que não ouve e não se faz ouvir sobre o seu trabalho (ou que não encontra as condições para o fazer), quando quer comunicar a sua prática para além do que ela afirma nos habituais contextos de exposição? Onde se situa o artista quando quer comunicar mais eficazmente a reflexão inerente à sua prática, tornar-se mais disponível para a crítica, ou quando quer ser ouvido e entendido?

As referências para procurar possíveis respostas a estas questões partem de uma experiência individual. Um doutoramento em pintura surgiu de uma necessidade do próprio trabalho: a de o colocar num contexto de discussão sobre a prática e o fazer e a de criar condições para um enquadramento mais consciente do mesmo, projetando necessidades futuras. No fundo, trata-se de uma espécie de parar para pensar, embora nunca se pare de fazer. Não deixa, no entanto, de ser uma pausa na prática artística continuada e no processo criativo centrado na experimentação: para escrever sobre o trabalho, é necessário um confronto mais doloroso com o mesmo e uma quase maior autoconsciência, diminuindo a velocidade de produção e olhando para as especificidades do fazer várias vezes, sob vários ângulos e perspetivas.

Partindo desta experiência individual, que se consolidou e adensou com a concretização de um projeto de investigação em pintura, e acreditando ser possível responder à questão que intitula este texto, talvez seja possível afirmar, com alguma convicção, que um dos sítios para onde o artista se pode dirigir quando quer ser ouvido é a escola de arte ou a academia. Aqui, ele envolve-se num contexto de maior e mais frequente discussão sobre o trabalho e de estímulo à procura e à dúvida. O método de trabalho em investigações em pintura, e não sobre pintura, traduz-se nas estratégias utilizadas para encontrar uma reciprocidade eficiente entre a componente prática e a componente teórica, sendo que o importante é tornarem-se evidentes as questões processuais. Um artista que deixe, assim, de estar fechado, seja no atelier, seja sobre o seu próprio trabalho ou sobre si mesmo, concretiza e consolida o abandono de qualquer pudor em relação ao ato de falar e escrever sobre o seu trabalho: falar sobre pintura, por exemplo, não retira o seu potencial expressivo e estamos mediante um nível de interpretação que pode e deve recorrer à palavra para adensar a perceção.

A criação artística e a investigação em arte podem, finalmente, unir esforços com dois propósitos fundamentais: o de colocar a prática artística num outro lugar, talvez novo, talvez apenas diferente, desejavelmente com uma melhor noção de si mesma e do que lhe é exterior e, por isso, também a enquadra e transforma; e o de dar um contributo à comunidade académica, aos teóricos, professores, críticos e artistas: tratando-se de um artista a pensar, a fazer e a escrever, e também a refazer, essa experiência e método de trabalho muito particulares e conectados com as especificidades do fazer podem constituir um resultado contentor de novas competências e sentidos, tornando pública e acessível uma experiência pessoal como matéria para a reflexão.

 

Ana Pais Oliveira

janeiro de 2016

 

Este texto sintetiza o texto Para onde se dirige o artista quando quer ser ouvido?, publicado originalmente no site http://projectobcip.wix.com/, referente ao Projeto de Investigação Bases Conceptuais da Investigação em Pintura (2014-2019), e igualmente incluído na tese de doutoramento em Pintura A cor entre o espaço pictórico e o espaço arquitetónico: processos relacionais nas práticas artísticas contemporâneas (FBAUP, 2015).

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