ABOUT TODAY

João Louro (n.1963) é um dos mais originais artistas portugueses da sua geração. Um dos melhores, arrisco. “ABOUT TODAY” é a exposição individual que a zet gallery pensou e criou com ele e que evidencia o caráter premonitório e reflexivo da sua obra. Numa seleção de cerca de dezena e meia de trabalhos, produzidos entre 1995 e 2019, na sua generalidade de exibição inédita (ou quase), e que convocam diferentes meios, ainda que não se possa negar que a bidimensionalidade e pictoralidade próprias da pintura sejam o fio condutor das propostas, a exposição reflete um universo de referências pessoais de um artista que há muito nos habituou às suas perguntas e ao seu olhar inquieto e atento sobre o mundo. O intervalo de tempo é, na verdade, dado pela “História do Crime”, obra que é quase uma antologia da importância da manipulação e do uso da palavra em toda a sua produção plástica e visual. Foi por isso que dedicamos uma sala ao conjunto de obras desta série, ou não fosse ela um caminho de quase um quarto de século. João Louro, dir-se-ia, gosta de enigmas e de investir as suas criações de camadas de leitura que permitam libertar a diferença de que falava Michel Foucault (1926-1984):

Para libertar a diferença precisamos de um pensamento sem contradição, sem dialética, sem negação; um pensamento que diga sim à divergência; um pensamento afirmativo cujo instrumento seja a disjunção; um pensamento do múltiplo – da multiplicidade dispersa e nómada que não limita nem reagrupa nenhuma das coações do mesmo; um pensamento que não obedece ao modelo escolar (que falsifica a resposta já feita), mas que se dirige a problemas insolúveis, quer dizer, a uma multiplicidade de pontos extraordinários que se descobre à medida que se distinguem as suas condições e que insiste, subsiste, num jogo de repetições.[1]

João Louro tem uma formação académica base em arquitetura e pintura e quando recorre à fotografia, à instalação ou à expansão dos seus objetos para uma terceira dimensão está, em permanência, a relacionar-se com o espaço-tempo que contextualiza a ação e o momento e, sobretudo, o seu pensamento. Arte-ideia, arte-conceito, na sua expressão minimal, são pontos de partida, mas está no espetador a chegada. É ele que conclui a obra, que a define, que a interpreta e a faz extrapolar o espaço hermético do atelier onde nasceu. Olhar a obra de João Louro constitui-se como um convite pleno à emancipação e as suas imagens são pensativas, partindo, desta vez, de Jacques Rancière (n.1940):

Supostamente uma imagem não pensa. Vulgarmente supomos que uma imagem é apenas objeto de pensamento. Sendo assim, uma imagem pensativa é uma imagem que contém pensamento não pensado, um pensamento que não é suscetível de ser atribuído à intenção daquele que a produz e que causa um efeito naquele que a vê, sem que este a ligue  a um objeto determinado.

(…)

A arte da era estética não deixou de apostar na possibilidade que cada medium podia oferecer de misturar os seus efeitos com os efeitos dos outros, de assumir o seu papel e de criar assim figuras novas, despertando possibilidades sensíveis que tinham sido esgotadas. As técnicas e os suportes novos oferecem a tais metamorfoses possibilidades inéditas. A imagem não deixará tão depressa de ser pensativa.[2]

As obras de arte de João Louro, as suas imagens, são pensativas, pensantes, verdadeiras teorias filosóficas. Não só contêm as semióticas do seu autor, como nos interpelam ativamente. Não há passividade possível na contemplação dinâmica que fazemos e cada uma delas é uma possibilidade de aprendizagem, de reflexão e, em muitos casos, se não todos, há o sentido premonitório como o que vemos na obra “The Plagues”, de 2001. No ano dos atentados ao World Trade Center, em Nova Iorque, momento de viragem na História da humanidade, João Louro faz o prognóstico, se quisermos, do que culmina neste estranho ano de 2020. Mas o futuro dura muito tempo, precisamos de acreditar que sim, e é na justificação da metáfora que confrontamos as pragas com mais uma obra em que as palavras escondem referências e outros autores. “L’Avenir Dure Longtemps”, de 2003/4, pede nome emprestado a um livro de Louis Althusser (1918-1990) que se constitui como uma espécie de autobiografia de um filósofo, francês mas de origem argelina, associado ao Marxismo Estrutural.

“ABOUT TODAY” nasce desta primeira consciência sobre o percurso de João Louro: a sua arrepiante contemporaneidade, dada, por um lado, pela leitura e uso que faz dos meios e tecnologias que o seu tempo coloca à sua disposição, o que o faz itinerar entre exercícios de pintura pura até a obras em que recorre à luz, como é o caso da obra “Love” e que corresponde a um dos seus caminhos e explorações nos últimos anos; como, por outro, pela pertinência das suas sugestões temáticas. Arriscaria citar a canção dos “The Beatles” que nos diz que o amor é tudo o que precisamos (“All You Need Is Love / Love is All You Need”). E, por falar em canções, “About Today” é o título de um tema dos “The National”, lançado em 2004, em que se conta a estória de um casal, como tantos outros, que se distraiu do amor no conforto e na acomodação do quotidiano, e se perdeu dos afetos, da urgência de cuidar. O amor, líquido ou não – na recuperação da visão de Zygmunt Bauman (1925-2017) – é o tema de toda a existência humana, transversal a todos e a cada um de nós e, por isso, é sempre atual, de agora e de manhã.

No seu “Mal-entendido em Moscovo”, escrito por volta de 1967, Simone de Beauvoir (1908-1986) aproxima-se da causa dos “The National”:

“Será verdade o que dizem, que não conseguimos comunicar, que ninguém compreende ninguém?”, perguntou a si mesma Nicole. Olhou para André, sentado no divã de Macha, com um copo de vodka na mão, e pensou que tinha de passar em revista todo o passado em comum. Tinham vivido de costas voltadas um para o outro, cada um por si, ignorando-se em vez de estarem unidos, transparentes. Antes de saírem do quarto nessa manhã, André olhava para ela com um ar hesitante, com vontade de dar-lhe uma explicação. Ela abrira a porta, ele seguira-a e no táxi permaneceram em silêncio. Não havia explicações a dar. As palavras iriam chocar contra aquela raiva, aquela dor, aquele coração empedernido. Quanta negligência, quanta indiferença! À frente de Macha, representaram ambos durante todo o dia uma farsa educada. Como hei de dizer-lhe que vou partir antes de André?[3]

Numa das visitas que fiz ao seu atelier, em Lisboa, no momento em que escolhemos as obras que integrariam a exposição, João Louro diz-me que quer dedicar esta exposição à Mulher. Cruzando esta ideia com a minha referência musical, acima citada, escolhemos em conjunto as obras, tendo privilegiado algumas que se recolhiam na intimidade do artista e que ainda não tinham tido oportunidade de emancipação, de serem pensamento, junto dos públicos. Entre elas está uma das que esteve em 2015 em Veneza, quando o artista representou Portugal na mais antiga Bienal no mundo e, sem dúvida, no mais relevante evento do sistema da arte contemporânea global. Escolhemos “Cover #18 (Dylan Thomas)” pela simbologia da viagem e por expressar o caminho de excelência de um artista com centenas de exposições realizadas, representado nas mais importantes coleções, públicas e privadas, em contexto português e além fronteiras. E voltamos a focar-nos na Mulher e no demais da Humanidade. É por este motivo que “ABOUT TODAY” é a expografia que, desde abril de 2014, mais alterou o white cube que é a zet gallery e que tudo começa num corredor de um imenso azul em que “Et Dieu Créa la Femme”, de 2011, anuncia, sobretudo, que a mulher criou Deus. Voltemos à filosofia para engatar no exercício de curadoria.

Em 1949, Simone de Beauvoir publica “O Segundo Sexo”, obra de cariz existencialista em que, pela primeira vez, se aborda a condição da mulher, procurando a introdução de uma revolução moral que promovesse a independência económica feminina e a igualdade entre sexos no acesso à educação e no conteúdo dessa mesma educação. Nesta obra, a filósofa francesa abordou abertamente questões relacionadas com a sexualidade feminina e foi referência para um vasto número de movimentos de libertação e emancipação da mulher em todo o ocidente. Apesar do conservadorismo da sociedade americana de então, o livro foi rapidamente traduzido para inglês e publicado nos EUA onde, em 1947, Simone de Beauvoir havia passado 116 dias, tendo viajado por 19 estados e 56 cidades e protagonizado um conjunto de palestras, sobretudo em contextos académicos, em que também abordou estes temas. A obra haveria de fazer o seu caminho e ser indutora de uma revolução, também feminina, em curso e cujos contornos haveriam de atingir clímax na conquista de liberdades, direitos e garantias no entardecer da década de 1960. Em Portugal, precisaríamos do fim de uma ditadura para lhe sentirmos efeito mas, como sabemos, a emancipação profunda está ainda por vir, com um quotidiano doméstico desigual, de uma forma geral, e com uma fraca expressão concreta da mulher-líder, com poucos impactos nos contextos profissionais e não representativa do que são hoje, por exemplo, a realidade das universidades e dos seus melhores.

Em 1956, o realizador francês Roger Vadim (1928-2000) apresenta, numa produção ítalo-francesa, “Et Dieu… créa la femme”, o filme que catapulta para o estrelato Brigitte Bardot (n.1934) que interpreta a jovem Juliette, cujos desejos sexuais estão à flor da pele. Bardot apresenta-se como sex-symbol, plena de consciência do seu corpo e do seu poder, não deixando a câmara de a filmar como a origem do mal, o pecado original que desvirtua o homem do seu caminho. Lembramo-nos dela a dançar descalça em cima da mesa e do rosto do personagem Michel Tardieu (interpretado por Jean-Louis Trintignant) a transpirar e a salivar. A cena é considerada uma das mais eróticas da história do cinema até então. O filme foi censurado em muitos países de tradição católica, causando uma imensa polémica. Nos Estados Unidos da América a obra foi mesmo condenada pela Liga da Decência Católica, não nos espantando por isso que, em 1955, o ingénuo levantamento do vestido de Marilyn Monroe (1926-1962), em “O Pecado Mora ao Lado” de Billy Wilder, bem mais contido que a coreografia de BB no ano seguinte, tenha sido alvo de equivalente escândalo. “Et Dieu… créa la femme” foi, não obstante a censura, um enorme êxito de bilheteira e “O Pecado Mora ao Lado” também. Era a mulher-objeto, a mulher sex-symbol, a mulher-corpo, que a pop art ajudará a acentuar, como uma espécie de primeiro e perigoso passo para a tal emancipação. Os primeiros espartilhos que se rebentavam, ainda que mantendo a atenção no belo e fazendo destas mulheres eunucos de pensamento, seres de intelecto não considerado. Teremos de esperar por Jean-Luc Godard (n.1930) para que a mulher protagonista seja filmada a partir do seu ponto de vista e com um enfoque na consciencialização da sua condição social e na urgência de um reposicionamento do seu papel na sociedade que então se construía.

João Louro faz-nos pensar sobre tudo isto e na semiótica escondida das obras, de tendência mais minimal, que apresenta nesta exposição, inscreve-nos subtis mensagens. “From Left to Right #7”, “Clockwise from Abose #2” e “Blind Image #221” são assim três trabalhos em acrílico sobre plexiglass que completam o alfabeto.

“ABOUT TODAY” de João Louro é a nossa forma de nos despedirmos deste tremendo ano de 2020 e de entrarmos em 2021 com um dos melhores. Foi uma guerra e a “Arte”, obra de 1995 e que inicia a série da “História do Crime”, foi a nossa arma. Por isso e por fim, uma referência a outra guerra, desta vez à I Guerra Mundial com a obra “Le Mort Homme #1” que nos remete para Cumières-le-Mort-Homme, um comuna do leste francês que, após a Batalha de Verdun, em 1916, ficou totalmente destruída e desabitada. Um presságio de fim. Ou não. O ser humano é feito de cicatrizes e ainda nos faltava referir mais uma inédita, que aqui expomos, em Braga, pelas nossas mãos: “Man Is a Being Made of Scars”, de 2017. Mas, como escreveu Hannah Arendt (1906-1975): “Toda a dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.”

Helena Mendes Pereira

 

[1] FOUCAULT, Michel – Nietzsche, Freud e Marx. Theatrum Philosoficum. Porto: Publicações Anagrama, 1980. Página 63.

[2] RANCIÈRE, Jacques – O Espectador Emancipado. Lisboa: Orpheu Negro, 2010. Páginas 157 e 190.

[3] BEAUVOIR, Simone – Mal-entendido em Moscovo. Lisboa: Quetzal Editores, 2015. Página 75.

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